Lisboa volta a ser palco da bienal de artes contemporâneas BoCA, que estreou, no passado dia 2, a sua quarta edição, focada nos movimentos migratórios, nos apagamentos históricos e em temas sensíveis da atualidade, como a violência racial e de género. Até 15 de outubro, vários espaços da capital portuguesa, e também da cidade de Faro, acolherão uma programação diversa de espetáculos, instalações, cinema, encontros e workshops.
Uma edição também marcada por uma forte presença de artistas de Espanha e da América Latina, a começar pelo argentino Gabriel Chaile, que marcou o dia da inauguração, na Praça do Carvão, com a apresentação da sua obra E se o autobiográfico não for mais do que a história dos outros a atravessar-nos? Uma escultura de autorretrato em frente a um forno de homenagem a Alcindo Monteiro, vítima da violência letal que expôs o racismo estrutural em Portugal, e que nos traz a visão de Chaile sobre o que é ser imigrante. “[Esta obra] resume as minhas perceções ao morar em Portugal e as histórias de outros imigrantes”, conta-nos o próprio artista, que reside em Lisboa desde 2020.
“Trazer estas linguagens e falar destes temas é, de alguma forma, colocar as margens no centro”, aponta Romão, acrescentando que o conceito da edição, “Presente Invisível”, assenta precisamente nessa ideia de “dar um lugar de fala e visibilidade pública” às práticas “menos visíveis” no contexto europeu. O que, para artistas como Gabriel Chaile, que vivem na pele essa discriminação, se reveste da maior importância. “Eu tenho um tom de pele castanho, diferente da cor de pele hegemónica na Argentina e aqui na Europa, e isso já me fez sentir estrangeiro no meu próprio país”, recorda o artista de Tucumán.
Em destaque nesta temporada da BoCA, com uma programação eminentemente gratuita, estão também outros artistas ibero-americanos. Héctor Zamora, do México, apresenta “Quimera”, uma ação que consiste num grupo de vendedores ambulantes imigrantes que vendem balões, com palavras que evocam os seus sonhos e expectativas. Lolo & Sosaku, uma das duplas mais criativas da cena contemporânea espanhola, trazem uma performance inspirada na música eletrónica e no som de materiais comuns como o alumínio, o ferro ou o plástico.
Ainda que não seja explicitamente intencional, John Romão explica-nos que este foco programático na arte da Ibero-América surge da sua “longa relação” com Espanha e, sobretudo, com a Argentina. “Trabalhei durante muitos anos como assistente de encenação e produção do Rodrigo García [dramaturgo hispano-argentino]”, conta-nos, e, por isso, considera ter hoje “uma atenção maior e um interesse particular” em relação à arte destes países, não descartando eventuais edições futuras da bienal nestes territórios. “Não é algo que eu já não tenha pensado”, admite. “Já estendemos a BoCA a cidades como Barcelona, Buenos Aires e Santiago do Chile. Torná-las cidades centrais da programação”, acrescenta, “seria um outro desafio, mas não é algo assim tão distante daquilo que me interessa”.