De uma entrevista casual para um documentário surgiu a ideia de um projeto que unisse os dois lados do rio Minho através do jazz. A entrevistadora, Cristina Marvão, é portuguesa, mulher do Norte, e o entrevistado, Diego Alonso, um galego que resolveu estudar no Porto. Juntos criaram O Eixo do Jazz em 2017, uma associação que desenvolve vários projetos para promover este género musical na Galiza e em Portugal, sem esquecer a formação e o apoio aos músicos.
Depois da participação de ambos num faladoiro (debate) sobre projetos transfronteiriços, no âmbito do encontro MUMI – Músicas no Minho, o EL TRAPEZIO foi conhecê-los e descobrir o que os une e o que mantém este projeto.
Como surgiu O Eixo do Jazz?
DIEGO ALONSO – No outro dia, no Faladoiro, disse que este projeto foi uma feliz coincidência, e é verdade. Eu sou de Vigo, estudei na ESMAE, no Porto, e lá tive acesso a eventos como o Guimarães Jazz, onde conheci a Cristina. Ela andava por lá a fazer um documentário, pediu para me entrevistar e, ao que parece, eu disse-lhe algo como: “Eu sou galego e não tinha ideia de que existiam tão bons músicos e sítios para tocar jazz em Portugal”. Refletia sobre o porquê de, na Galiza, não sabermos da existência disto.
Uns meses mais tarde, ela ligou-me por causa dessa frase e disse-me que queria contar comigo para criar uma associação que conectasse os músicos e intérpretes de jazz da Galiza e de Portugal, mas que também criasse um circuito nesta região. E assim foi. Fomos começando a criar o circuito, que permite aos músicos não só tocar de um lado e do outro do Minho, mas também apresentar os seus temas originais para lá do jazz tradicional.
E um outro aspeto muito importante do projeto é que permite aos músicos fazer só música e não ter de se preocupar com tudo o que envolve esta atividade: redes sociais, agenciamento, marcar concertos… Quando temos de fazer tudo isso, parece que tocar – que é a essência da música – é o menos importante.
CRISTINA MARVÃO – É engraçado estar a acontecer esta entrevista e outras coisas onde vamos participando porque comemoramos cinco anos de existência. Tudo isto que o Diego contou aconteceu no verão de 2017, mas hoje anda tudo mais ou menos na mesma. Eu já trabalho com o jazz desde os anos ’80 e, desde essa altura, os músicos continuam a ter de saber fazer tudo para além de tocar.
Ajudá-los nessa parte é também um objetivo nosso que ainda não conseguimos realizar na totalidade. Por burocracia e porque ainda não temos essa capacidade. Já fizemos workshops sobre finanças, mas a realidade de aqui é diferente da de Espanha, o que torna tudo mais difícil. Por isso, temos estado a ganhar força através da música para conseguirmos arranjar mais gente para trabalhar connosco nesta área.
Que têm feito, então, nestes cinco anos?
Então, neste projeto, convidamos sempre um músico, português ou galego – ultimamente até dizemos que pode convidar mais um ou dois músicos – e faz-se uma residência artística durante uma semana, onde os residentes não pagam ou pagam mesmo muito pouco para lá estar. Trabalha-se um repertório, faz-se um concerto final e, daí, geralmente contactamos o artista convidado para tocar com o nosso ensemble.
Estamos agora também a gravar o nosso primeiro disco, um registo que possa manter no tempo o repertório que tocamos. Isso é importante para que o Eixo do Jazz Ensemble possa ter mais concertos.
CRISTINA – Temos também outro projeto importante, o Jazz na Caixa, que nasceu praticamente ao mesmo tempo do que o Eixo, por outra feliz coincidência. A nossa sede está em [Vila Nova de] Famalicão, primeiro, porque era um centro onde não havia jazz e, segundo, porque é um território bastante central no eixo galego-português que queríamos criar. Mas lá também havia outra pessoa interessada em jazz, que nos foi apresentada pela Câmara Municipal, e que queria fazer uma coisa chamada Jazz na Caixa: uma série de espetáculos de jazz em cima de um palco. Essa pessoa é o Tiago Machado, guitarrista, que curiosamente também estudou em Vigo.
Obviamente que entre nós houve logo uma faísca porque isso tinha tudo que ver com o que queríamos fazer. Fizemos um Jazz na Caixa “zero” em 2017, quase sem recursos, mas contámos logo com a presença do João Mortágua e do Iago Fernández. Em 2018, já com o apoio da Câmara, fizemos três fins de semana de Jazz na Caixa, com o cuidado de convidarmos galegos e portugueses do Sul. Isto porque somos um eixo e, portanto, queremos estendê-lo ao máximo.
Entretanto reduzimos a duração do Jazz na Caixa para apenas três dias, embora, no ano passado, tenhamos feito três fins de semana separados. Porque recebemos apoios relativos à covid e decidimos também apoiar os músicos nos seus projetos. Para além disso, vamos criando alguns desafios interessantes em cada edição. Convidámos, por exemplo, a Rita Redshoes a tocar em duo com o Bruno Santos – que é o marido dela – e foi um concerto lindíssimo.
Eu, que não sou música, posso dizer que me sinto muito orgulhosa de ver músicos que começaram connosco e que agora já estão com carreiras lançadas. No início era uma “cachopada”, mas continua a ser assim. Este ano, em Monfortinho – também na fronteira – tivemos a tocar connosco uma jovem de 15 anos, que me foi entregue pelo pai, até jovens de 30. [risos]
DIEGO – Obrigado por isso, Cristina. [risos]
Porquê defender o jazz na Galiza e em Portugal? Que têm de especial estas comunidades?
DIEGO – O jazz existe há muito tempo nos dois sítios. Na Galiza, sobretudo nos últimos 20 anos, têm surgido muitos eventos e bandas de jazz (como os Clunia, por exemplo). Mas foi a partir da criação do Seminário Permanente de Jazz de Pontevedra que passou a haver uma efervescência de músicos de jazz, e até alguns dos mais antigos que criaram o seminário são agora dos maiores músicos de jazz da Península. Isto é uma incubadora para novas gerações de músicos, mas a verdade é que continua a não haver na Galiza muitos espaços para que todos possam trabalhar.
Do lado português, pelo que sei, há mais oportunidades e mais sítios onde se pode tocar jazz. Obviamente que também é um território maior, mas é possível mover-se dentro de Portugal e há certas iniciativas culturais que são muito bem feitas.
O que falha, sim, é a conexão entre os dois territórios. Os músicos mais estabelecidos, claro, sempre tiveram mais contacto entre si por uma questão profissional: ouvem as músicas uns dos outros, vão-se conhecendo em jams e outros eventos… e isto cria um circuito limitado. Quem está de fora pensa que é difícil conhecer esta gente, que são pessoas menos acessíveis, o que não é verdade de uma forma geral.
O que fazemos, então, é fomentar esta interconexão. Com o Jazz na Aldeia, por exemplo, um músico menos experiente pode conhecer músicos mais experientes, e cria-se ali um acesso que antes seria menos provável. Ou até acontece que os músicos formadores conhecem músicos mais “pequenos”, mas muito talentosos, e, se calhar, esses artistas começam a despertar para a nova geração. Mas isto é algo que transcende o próprio Eixo. Funcionamos como um interconector, mas depois criam-se muitas outras ligações fora disto.
CRISTINA – Da minha parte, posso dizer que esta ligação entre Portugal e a Galiza é óbvia. Temos praticamente uma língua comum e bastantes outras afinidades. Os músicos galegos costumam vir estudar para o Porto, os portugueses vão para a Galiza e, portanto, há uma facilidade que se cria por esta linguagem comum, seja oral ou musical.
O que falta então para que esta ligação seja ainda mais forte?
CRISTINA – Em Portugal também não temos uma coisa que há mais na Galiza: o público nos concertos. Eu tenho visto concertos na Galiza que têm sempre mais público do que em Portugal, independentemente de o músico ser de topo ou não. Porque as pessoas vão para a rua, vão ver e ouvir estes concertos, e automaticamente têm mais conhecimento da matéria. Em Portugal, isto é um desafio. É um problema convencer os portugueses a sair de casa e a pagar para assistir a qualquer evento cultural e, particularmente, a concertos de jazz. Sem ser, talvez, no Porto, onde já assisti a um concerto em que não conhecia praticamente ninguém. Porque normalmente são sempre as mesmas caras.
Mas também já tivemos, neste evento que fizemos em Monfortinho, mais de 100 pessoas a assistir, numa aldeia que tem 300 pessoas. Muitas delas nunca tinham ouvido jazz e gostaram. E realmente foram capazes de combater o preconceito sobre o jazz que ainda existe e que, provavelmente, ficou do “tempo da outra senhora”. A verdade é que o nosso público está muito arredado dos grandes centros, portanto temos de ir lá buscá-lo.
Para terminar, como é que praticam esta ligação ibérica nas vossas vidas?
DIEGO – No meu caso, é através da língua. Gosto muito do português, de certas expressões. Em Vigo, sou sempre aquele que faz as piadas em português. Portanto, para mim, a língua é algo que me une muito a Portugal, que nos une a todos.
Mas acho que a própria associação – e eu, incluindo-me nela – também promove esse iberismo, mesmo que não seja algo muito assumido. A música que fazemos juntos cria isso por si só, nós só temos de ajudar a que isso aconteça. O facto de poder trabalhar nos dois países é maravilhoso e, às vezes, até é mais barato para mim viajar desde Vigo ao Porto do que de Vigo à Corunha. Acho que isso é bom e é algo que se deve fomentar mais.
A questão da alta velocidade ferroviária que agora se discute, por exemplo, também é iberismo. É muito importante que se crie este eixo entre a Galiza e o Norte de Portugal. Mas não só com o Norte e, sim, com toda esta faixa atlântica e não só.
CRISTINA – Outra coisa que nos liga também muito é a comida [risos]. Como muitos outros portugueses do Norte, eu já vou à Galiza desde os anos ’70, mas descobri uma Galiza diferente quando comecei a trabalhar com O Eixo do Jazz. Passei a procurar mais, a descobrir mais sobre a Galiza, e encontrei também bons pratos. [risos]
Eu costumo dizer que, se fosse possível, mudava-me imediatamente para a Galiza. Gosto sobretudo da zona mais a norte, longe das praias conhecidas, onde há menos gente. Acho que nesse aspeto geográfico também temos bastantes parecenças e, por isso, só podemos resultar bem juntos.