Concertos de música clássica, música antiga e programação familiar que fundem as culturas portuguesa e espanhola. Nesta 40.ª edição do Festival Ibérico de Música de Badajoz, os olhos voltam a estar postos em Portugal, é certo, mas a alegria vai mais além. 43 anos depois da sua última visita, a Orquestra Nacional de Espanha (ONE) regressa à capital pacense no dia 10 para o concerto de encerramento no Palacio de Congresos Manuel Rojas, coincidindo com a festa nacional vermelha e verde.
A acompanhá-la estará Marta Menezes, pianista portuguesa já consagrada além-fronteiras, que vai interpretar Rapsodia portuguesa para piano e orquestra do compositor espanhol Ernesto Halffter. Uma peça “pouco frequente” nas palavras do diretor do festival, Javier González Pereira, que diz fechar o “círculo de felizes coincidências” a par desta celebração conjunta do dia de Portugal e da vinda da ONE a Badajoz. Dirigida por Jaime Martín, maestro titular da Orquestra Sinfónica de Melbourne desde o ano passado e convidado da Orquestra e Coro Nacionais de Espanha para a temporada 2022/2023.
O festival, porém, começou no passado sábado (3 de junho) com a atividade ‘Música en la calle / Música na rua’. Foram muitas as crianças e jovens músicos que encheram neste dia as praças e ruas do centro da cidade, incluindo grupos locais e a Banda de Música de Campo Maior, que fica a poucos quilómetros dali, do outro lado da fronteira. “Gostamos muito de juntar os músicos portugueses e espanhóis nesta festa pública: juntam-se não só para tocar, mas também para comer depois”, comenta o responsável.
No mesmo dia, mas à noite, houve lugar para uma proposta dirigida ao público familiar e infantil, que se estreou na sala OffCultura. Platero… ¿tú me ves? é o nome do espetáculo que reúne música ao vivo, dança contemporânea e texto para dar voz ao burro Platero, que confessa à plateia as suas alegrias e angústias. Uma criação de Juan Ramón Jiménez, autor do livro Platero y yo, juntamente com o compositor Eduardo Sáinz de la Maza e a música Ana Moríñigo, que também se destacou pela positiva.
Para acrescentar à programação, realiza-se o XIII Festival Jovem, que se espraia este ano para as localidades próximas de Valencia de Mombuey e Valverde de Leganés. Nesta secção dedicada aos estudantes de música e jovens intérpretes, que aconteceu também no último fim de semana, não houve representação portuguesa como em anos anteriores – o caso da Orquestra Sinfónica Juvenil – ouvindo-se o som das guitarras de Leonardo Gutiérrez e Ana Ortega. Dois talentos locais que venceram ex aequo o prémio ‘Sociedad Filarmónica de Badajoz’ do XX Concurso de Jovens Músicos ‘Ciudad de Almendralejo’ 2022.
Mas antes do concerto final, haverá ainda oportunidade de voltar a olhar para Portugal no dia 9 de junho, com a atuação do guitarrista Tiago Matias, nomeado recentemente para os prémios Play de música clássica. Em destaque estará o programa ‘Códice de Coimbra´, um repertório de música dos séculos XVII e XVIII para guitarra barroca que entusiasma o diretor do festival. “É um conjunto de peças de origem incerta que o Tiago descobriu para a sua tese de doutoramento, a partir de manuscritos que estão na Biblioteca da Universidade de Coimbra, e que mistura com outras da mesma altura da música europeia”, diz.
Hoje, salienta que o festival “já tem algum sucesso”, mas nem sempre foi assim. Tudo começou em 1973, ainda Portugal e Espanha “andavam de costas voltadas” e a braços com duas ditaduras fortes. Nesse ano, ao contrário do que se podia esperar, um grupo de pessoas em Badajoz decidiu fundar um festival com a “ideia original” de unir os países ibéricos pela música. Só dez anos mais tarde, “com a aprovação do Estatuto de Autonomia” da comunidade extremenha, e depois com a entrada dos dois países na União Europeia e a consequente abertura de fronteiras, dar-se-ia o salto para a reaproximação. “Antes não existiam as instituições dentro das comunidades que fazem hoje a ponte entre Portugal e Espanha”, lembra.
Ainda assim, o que é hoje o Festival Ibérico não deixa de ser o que era já desde o início. “O que caracteriza realmente este festival é a atenção pelas manifestações culturais de Portugal desde o lado espanhol”, afirma Pereira, que destaca também a afluência do público português às atividades. “Recebemos muitas pessoas de Elvas e do Alentejo, que está aqui ao lado, mas também temos informação de que para o concerto do dia 10, por exemplo, haverá gente vinda do Porto e de Lisboa”, o que o faz acreditar numa “expansão maior do festival em Portugal” e numa “troca mais fluída entre as culturas portuguesa e espanhola”.
E isso faz-se com uma visão sem preconceitos, tolerante, que a organização do festival “tem aplicado” em tudo o que faz. “Talvez por eu também ser português”, admite, “ou por viver na raia, o meu olhar não consegue distinguir a cultura de Portugal da cultura de Espanha. Não há uma diferença característica.” Uma ideia que Javier González sente que o público tem abraçado cada vez mais. “Acho que essa é a maior vitória do festival”.