El Trapezio

Frederico Duarte: «Assumo a inconstância e a complexidade como parte de ser ibérico»

Frederico Duarte

Frederico Duarte (Lisboa, 1979) deixou de trabalhar como designer há quase 20 anos, mas o design é, sem dúvida, aquilo que mais o entusiasma profissionalmente – por outros meios que não o fazer mais pragmático – e sobre o qual dedica grande parte do seu tempo. Da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, onde se formou muito para além das competências técnicas, deu o salto para o mundo de comboio, quando uma conferência internacional de design o chamou a fazer um Interrail no verão de 2002. Em Brno, na Chéquia, diz que arranjou ”logo três empregos”, já que “estava no lugar certo à hora certa.” Arriscou ir sozinho e a sorte bateu-lhe à porta. Da Europa Central rumou à Malásia, onde esteve na agência de publicidade multinacional Leo Burnett, estagiando depois em Itália na Fabrica Benetton e regressando finalmente a Lisboa para colaborar com a ExperimentaDesign, associação responsável por uma importante bienal sobre design, arquitetura e cultura de projeto.

Todas estas experiências, ainda que enriquecedoras ao nível mais prático, foram definidoras de uma carreira alternativa que Frederico tem vindo a fazer “à volta do design”. Escreve sobre a temática, tanto em jornais como nos seus projetos particulares e colaborativos. É coautor do livro Fabrico Próprio sobre o design na pastelaria semi-industrial portuguesa, cofundador da revista Fazer sobre design na língua portuguesa e, este ano, é também um dos responsáveis pela curadoria da 1.ª Trienal de Design da Covilhã. Uma iniciativa do Município local com a produtora Ideias Emergentes, nesta que é Cidade Criativa do Design pela UNESCO desde 2021 e que, já na próxima primavera, acolhe também a discussão e a observação públicas do design feito em Espanha.

Como surgiu este gosto pelo design?

Bem… Quando eu era adolescente, havia um programa na RTP2 chamado 1.000 Imagens sobre publicidade. Eu via aquilo e tinha vontade de fazer anúncios. E percebi que, para isso, o curso que tinha de tirar era design, logo fui para design de comunicação. Mas antes já tinha interesse pelas artes. É curioso até que eu cresci nos Olivais e não sabia da existência da Escola Artística António Arroio, senão teria ido [para lá]. Durante o curso, porém, apercebi-me rapidamente que a publicidade era só uma parte daquilo que poderia fazer. E então, como não tinha aulas às quartas à tarde, criei um grupo de alunos que se chamava Design à quarta porque queríamos falar mais sobre design. Foi na mesma altura em que comecei a ler mais sobre a área e a perceber o sistema de conferências, associações e revistas de design, que me levou depois a viajar pelo mundo. Mas já há muitos anos – há cerca de 20 – que deixei de trabalhar como designer, e tenho trabalhado desde então à volta do design.

Como descreverias o teu trabalho atual? 

O design é o meu campo de trabalho e os designers são os meus interlocutores. Aquilo que me interessa é identificar quem faz este trabalho, com o intuito de o valorizar. Há um problema que é o das empresas não terem interesse em divulgar quem faz o design dos seus produtos. Isso não lhes passa pela cabeça, é uma coisa que existe tal e qual. E depois, também, vão divulgar para quem? Vais pôr os créditos do design numa embalagem do leite? Não faz muito sentido. Mas, efetivamente, [o design] foi feito, e se tu tiveres uma abordagem relativamente séria a uma profissão, vais querer identificar. 

Isso foi o que fizemos, por exemplo, na primeira edição da Fazer, num artigo sobre propaganda política. Partimos da premissa de que os outdoors são os objetos que mais definem a paisagem visual urbana em Portugal. Existem por todo o lado, ao longo de todo o ano, e Portugal é o único país da Europa onde os partidos políticos comunicam com os cidadãos durante todo o ano. Mas porquê? E quem são estas pessoas [que desenham os outdoors]? Foi isso que fomos descobrir ao entrevistar pessoas dos oito partidos com assento parlamentar na altura, verificando que sete desses oito têm designers na sua estrutura e que metade dos outdoors que mostrámos na nossa exposição foram desenhados por mulheres. Esta é uma estatística que não conseguirias obter se não tivesses feito primeiro a pergunta. 

Portanto, interessa-me sempre divulgar o design: dizer que isto foi desenhado por esta pessoa, com este objetivo, e que te deves preocupar com isto e isto. Até porque, em última análise, o meu trabalho servirá para que as pessoas sejam mais exigentes com o meio que as rodeia. 

Quando te convidei para conversarmos, referiste a tua “hispanofilia crónica”. Em que se traduz na prática?

Eu sempre gostei muito de Espanha. Lembro-me de fazer uma viagem, ainda era adolescente, à Galiza– onde quero muito voltar – e fui também numa visita de estudo a Mérida. Sempre gostei muito da comida espanhola, embora talvez seja um bocadinho forte nos fritos (risos). É verdade que somos também vizinhos, mas conhecemos pouco os espanhóis e estes ainda nos conhecem menos. Essa, para mim, é a questão que se sobrepõe a tudo. O meu interesse por Espanha – e acho que pelo Brasil também – parte da resistência à fatalidade anglo-saxónica. Parece que, em tudo o que fazemos, temos de estar a falar inglês. As referências são sempre anglo-saxónicas… e isso não tem de ser assim. É só olharmos para o que é feito, dito e escrito nestes dois países, tão próximos de nós.

E eu sempre pensei: se eu tenho Espanha aqui ao lado, porque é que eu sei tão pouco? Então fui explorando esta cultura cada vez mais. Sei falar bem espanhol e já há muitos anos que acompanho a atualidade e a política espanholas, lendo o El País por exemplo. A história de Espanha até é algo que me interessa mais, também pela sua ligação à história portuguesa. Mas continuo a achar que a hispanofilia lusa é uma forma de masoquismo, porque os espanhóis, em geral, estão-se nas tintas para os portugueses, ou então dizem algo que eu detesto: “En Portugal sois muy auténticos”. Como se estivessem a passar-nos um atestado de subdesenvolvimento, ou então de irmão mais novo (risos).

E em termos profissionais? O que mais te interessa na cultura visual espanhola?

Viajo muito para Barcelona, para Madrid… Em 2022, fui cinco vezes a Valência, porque era a Capital Mundial do Design. De todas as vezes que vou [a Espanha], fico sempre impressionado pela complexidade cultural. A questão das várias línguas, por exemplo, faz com que o país seja uma verdadeira soma de partes. Embora isso, muitas vezes, se reduza a um recorte muito pequeno quando, por exemplo, as pessoas pedem que os artefactos que resultam da prática do design tenham uma ideia de identidade nacional. No caso de Espanha, isso está ligado a uma pulsão centralista muito forte que sublima uma certa identidade espanhola, ainda herdeira da ditadura de Franco e supostamente superior a todas as restantes particularidades regionais.

Há uma coisa que me fascina bastante, ainda que por um lado negativo, que é o papel das lojas de cadeia na homogeneização da paisagem visual urbana. Por exemplo, o grupo Inditex é já uma parte das nossas vidas, mas há também outras lojas, como os supermercados ou as lojas de gomas, que promovem uma cultura visual bastante semelhante em todo o território ibérico. Mas podemos juntar aqui também as lojas chinesas, os pronto-a-vestir, as farmácias “à francesa” muito presentes em ambos os países. Temos ainda um grande património histórico edificado e um património que vem das ditaduras, que tiveram um absoluto interesse, como vimos, em definir o que é a identidade [dos países]. 

E o uso do espaço público também é algo que me interessa: por exemplo, as senhoras nos bancos de jardim ou nas esplanadas. No fundo, a ocupação das ruas e das praças. Isso é muito fascinante.

No editorial da última edição da Fazer escreveste que “todo o design é local”. Pergunto então se existe, por um lado, um design com características ibéricas e, por outro, uma prática ibérica do design.

A primeira parte desta pergunta liga-se, de facto, ao que já disse sobre a identidade nacional. O que me interessa enquanto crítico não é entender ou interpretar uma ideia de identidade de um determinado artefacto, mas entender o contexto da sua prática. Se há um design ibérico? Depende. Se responde a uma questão ibérica, partilhada por ambos os países ou que foca alguma das particularidades ibéricas, podemos dizer que sim. Por exemplo, o trabalho de Nacho Padilla, que foi diretor criativo das cidades de Madrid e Barcelona, é exemplar neste caso. Mostra como alguém, contratado para pensar criativamente a comunicação de uma cidade, mesmo ao nível da multa ou do formulário, consegue interpretar as especificidades do seu contexto. Na entrevista que lhe fizemos, ele refere que isto só é possível estando criadas as condições para um melhor trabalho e valorização da profissão, e que ele teve sob os governos de Manuela Carmena e Ada Colau. 

Se há uma prática ibérica do design? Eu penso que não, porque, se existe, ainda está muito num campo entre o artificial e o oportunista. Um bom exemplo que ressalta logo é o do Mercadona, que inclui as várias línguas ibéricas nas embalagens dos seus produtos, mas só está presente no espaço de consumo ibérico. A moda também está cheia de exemplos de colaboração entre designers portugueses e espanhóis. Há vários portugueses, por exemplo, que trabalham nas empresas da Inditex, e empresas portuguesas como a Parfois têm na sua direção criativa pessoas espanholas. Essa ligação existe porque há uma lógica de reconhecimento profissional, com [o contexto de] um mercado semelhante que, por vezes, cria nas empresas estruturas de decisão específicas para o território ibérico. Se há uma força que neste caso nos junta é a fast fashion. Grande parte da indústria têxtil portuguesa está a trabalhar para o grupo Inditex, mas há também muita absorção de conhecimento em design de um lado e do outro.

Que oportunidades existem então para os países ibéricos aprofundarem ainda mais as suas relações ao nível do design?

Acho que tem de existir mais intercâmbio ao nível académico. Uma das coisas que trouxe de Valência foi um projeto chamado Disseny Obert (Design Aberto ou Diseño Abierto), criado na Escola de Design de Valência e que assenta em duas dimensões. Uma é a criação de uma biblioteca móvel para livros de design, através da qual as pessoas podem ter contacto com as obras. Mas depois tem outra dimensão – e foi essa que eu trouxe – que é a de leitura e recensão de obras de design. Então fizemos um protocolo entre esta escola, a Faculdade de Belas Artes [da Universidade de Lisboa] e a ESAD das Caldas [da Rainha] para a criação de um site que inclui todas as recensões que os alunos das várias escolas estão a fazer e que podes ler nas várias línguas: castelhano e português. É uma aproximação grande, [que já se materializou] em workshops e apresentações que fizemos em Valência e em Lisboa. Mas é preciso mais projetos, seja no âmbito do programa Erasmus ou outros, de estudo da realidade [do design] contemporânea ou histórica dos dois países. Acho que nos aproximaria muito mais.

Outra questão importante – que em Espanha é muito forte e em Portugal é completamente ausente – é a valorização profissional. Em Espanha há várias associações profissionais de design, nas várias regiões, e em Portugal não existe uma sequer. Existe uma associação nacional do design mas apenas no papel, pelo que temos um grave problema de representatividade profissional que, para ser resolvido, era só aprendermos com os espanhóis, como se diz. Mas, claro, é preciso resolvermos primeiro a questão da língua. Acho que sobrestimamos o quanto os portugueses sabem de espanhol e, pelo contrário, é uma raridade que um espanhol saiba português. O que se concretiza neste paradoxo humilhante de, muitas vezes, termos de comunicar entre nós numa terceira língua, nomeadamente o inglês.

Recentemente anunciaste que fazes parte da equipa curatorial da primeira Trienal de Design da Covilhã. Podemos esperar pontes nesta exposição com o país vizinho ou as regiões fronteiriças?

Sim. Ainda não o anunciámos, mas a exposição que eu e a Vera [Sacchetti] estamos a preparar chama-se Aqui e agora, e será sobre o design biorregional e as práticas situadas do design. O primeiro tem que ver com o reconhecimento do trabalho de forma adequada e sustentável, usando os recursos naturais e humanos de um dado território. E as práticas situadas prendem-se com a consciência da história e da vida de cada designer, bem como de uma ideia de urgência de um determinado projeto. Neste sentido, por exemplo, convidámos uma designer [espanhola] chamada María Rufilanchas, que tem um projeto sem fins lucrativos chamado Teta & teta. Ela cria isto em paralelo ao seu trabalho em publicidade para o reconhecimento dos direitos das mulheres e, sobretudo, do cancro da mama. Fez, por exemplo, um soutien só com uma copa para as mulheres que fizeram uma mastectomia. Mas aqui interessa-nos também o trabalho do designer ao nível do audiovisual, o uso da publicidade como campo de trabalho do design.

Para resumir, vamos ter trabalhos muito diferentes, de designers de todo o mundo, e o que queremos é mudar a ideia daquilo que tradicionalmente se considera design. Interessa-nos mostrar uma mudança do discurso nos últimos anos que foi criado também através do design.

Para fechar, o que é ser ibérico para ti?

Acho que ser ibérico é ter a consciência que nascemos ou que vivemos num território muito especial da Europa, cuja história é muito particular. Mas é também ter noção de que a história não só não acaba aqui, como também não sabemos o que pode acontecer no futuro. A versão do que é ser ibérico agora pode vir a ser outra coisa. Se quisermos, a ideia de ibérico, por muito paradoxal que seja, é uma ideia de inconstância. Assumir a inconstância – e também a complexidade – como parte de ser ibérico. Para mim, são as duas palavras-chave.

 

Nota de atualização: Após a publicação desta entrevista, a designer espanhola María Rufilanchas cancelou a sua participação na 1.ª Trienal de Design da Covilhã por motivos pessoais. Desta forma, a equipa curatorial da exposição dirigiu novo convite aos designers Emili Padrós e Ana Mir, da empresa catalã Vergés, para apresentarem uma coleção de mobiliário pensada para o envelhecimento ativo.

 

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