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Memórias de Lisboa e Luanda, revisitando Gabriel García Márquez

Mujer sentada en una silla frente a una pared blanca

Durante os vários anos em que morei no Brasil, conheci um casal da Finlândia. No afã de escaparem ao rigoroso inverno escandinavo, costumavam viajar rumo a latitudes mais quentes e luminosas, nos meses mais frios do ano. Estavam então na Bahia, e ele, o marido, tinha um bom domínio de português, comando acumulado ao longo de temporadas passadas a sul, nomeadamente, no Algarve. Um dia, conversando, disse-me, de sorriso estampado nos lábios: “Já viajei muito, conheço várias cidades do mundo, mas nenhuma é como Lisboa… Lisboa é única, é maravilhosa!”

Confesso que fiquei comovida. Concordo com ele. Eu, filha de um português nortenho e de uma goesa, que se conheceram em Angola, eu que moro há alguns anos no Porto, concordo com ele. Lisboa é única, não há outra cidade como Lisboa, Lisboa é especial. Não sei exatamente em quê, mas creio que em tudo. Lisboa é, verdadeiramente, a musa irresistível que reconheço na canção de Carlos do Carmo, “Lisboa, menina e moça” – essa Lisboa, a de fados e fadistas, não só me comove como me faz arrepiar, num estado de emoção total.

Há algum tempo, reencontrei, numa das prateleiras da minha casa, um livro de Gabriel García Márquez: ‘Por la libre. Obra periodística 4 1974-1995’, publicação da Mondadori acabada de imprimir em Madrid, em 1999. O meu exemplar tem uma dedicatória em espanhol, desejando-me “¡Feliz cumpleaños!”. Foi um regalo que recebi em algum mês de janeiro, não sei qual, pois não tem data, não consigo precisar o ano. Mais do que um presente, é, definitivamente, uma relíquia. E fala de Lisboa, claro, no capítulo ‘Portugal, territorio libre de Europa’.

Partilho algumas passagens sobre essa Lisboa que não conheci e que García Márquez visitou no pós-25 de Abril, revivendo “la experiencia juvenil de mi primera llegada a La Habana el 20 de enero de 1959, pocos días después del triunfo de la Revolución”. A descrição do Prémio Nobel colombiano é encantadora, permitindo quase sentir “el olor a mariscos del viento y el aire de libertad nueva” que então se respirava. Outra referência fundamental são as palavras do escritor, afirmando: “La influencia negra es muy notable en Portugal a través de las colonias africanas, y se manifesta en el carácter mismo de los portugueses, y todo el país está saturado de música caliente de Cabo Verde y Angola, que parece música del trópico nuestro”.

Na Lisboa democrática havia música e havia “el cine bueno”, com uma quota para filmes pornográficos que atraíam ibéricos dos dois lados da fronteira. Conta García Márquez: “Millares de españoles, la mayoría sin color político definido, devoran esa cuota en un fin de semana, y el lunes vuelven a atravesar la frontera con una cara de agotamiento feliz, y comentando  en voz baja que no es posible tanta belleza, qué carajo, esto no puede durar. Más afortunados todavía son sus compatriotas de la frontera, los extremeños y gallegos que pueden ver en sus receptores la televisión portuguesa. Hace unas semanas, cuando menos lo soñaban, se les metió dentro de la casa la película más prohibida en España: El último tango en París”.

Mas todo este relato tem tanto de mágico e enternecedor, quanto de cru e agreste, lendo-se um pouco antes, no mesmo livro, que: “Por motivos históricos y geográficos, siendo uno de los países más pobres del mundo pero con una posicíon estratégica esencial, Portugal está obligado a sentarse a la mesa de los países más ricos y sofisticados de la tierra, pero hablando un idioma que nadie entiende porque a nadie le conviene entenderlo y con los fondillos remendados y los zapatos rotos, pero con la dignidad que le impone el haber sido en otro tiempo el dueño casi absoluto de todos los mares”.

Esse antigo dono dos mares deixou para trás a sua pegada colonialista. Em ‘Por la libre Obra periodística 4 1974-1995’, há dois capítulos que falam de Angola: ‘Operación Carlota – Cuba en Angola’ e ‘Angola, un año después. Una nación en la escuela primaria’. Admito que este segundo conjunto de páginas sobre a ex-colónia em que quase nasci me toca particularmente. Segundo o escritor colombiano, em algum momento: “En Angola no había fósforos. (…) Tampoco había jabón, ni leche, ni aspirinas, ni cuchillas de afeitar ni muchos otros artículos simples de la vida cotidiana, y en algunas regiones se había acabado la sal desde hacía más de tres meses”.

Aquella penuria parecía un contrasentido en Luanda, la capital de Angola, cuya belleza moderna y radiante me había sorprendido desde el aire. Era todo lo contrario de la imagen convencional del África negra. Tampoco tenía nada del Portugal soñoliento y católico de las canciones portuguesas, sino que parecía más bien un balneario de moda de la Riviera italiana con un malecón interminable de palmeras iguales y rascacielos de vidrios azules frente a un mar juvenil”.

Como já contei, de alguma forma estive em Angola, embora só antes de ter nascido. A estória da minha família faz parte da história do colonialismo português. Sou filha e neta de goeses, também filha de um português que, muito jovem, foi para Angola e aí ficou. Não julgo o meu pai, não julgo os tantos e tantos rapazes portugueses mandados a defender a soberania nacional em África. Também não condeno outros que se terão mudado voluntariamente. Uns e outros, todos, enamoradíssimos de Luanda, Maputo, Bissau. O meu pai sentiu sempre um incomensurável amor por Angola, a minha mãe e o meu padrasto ainda o verbalizam.

Contudo, não subscrevo qualquer forma de colonialismo. Admito que houve contextos históricos específicos, mas condeno políticas de estado assentes na dominação do outro e na sua erosão. Em Portugal, talvez por demasiado recente, o tema ainda é delicado, mas precisa ser enfrentado. Sem enaltecimento cego do passado, com o reconhecimento do que ele foi, no seu todo. De volta a García Márquez, não pretendendo generalizar, mas confiando nas suas palavras, que lástima que tenha sido assim, pois sobre a capital angolana o Nobel diz que, “vista por dentro, la ciudad no era más que un deslumbrante cascarón vacío”, pleno de estabelecimentos comerciais fechados, vitrines quebradas, estantes desmanteladas.

“La escasez de todo empezó el 11 de noviembre de 1975, día de la independencia nacional, cuando el ejército portugués abandonó el país y se proclamó la República Popular de Angola”. Com a conquista da independência, “se fueron cuatrocientos mil portugueses, la última generación de las muchas que habían disfrutado a sus anchas de aquel territorio vasto, rico e ajeno” e “a la hora de irse en estampida, derrotados por un proceso lento pero irreversible que nunca se habían tomado el trabajo de entender, les bastó con llevarse cuanto consideraban suyo para que a Angola libre no le quedara nada”.

Da exuberência sobraram “escombros” onde apenas “el dos por ciento de la población sabía leer y escribir el portugués” e onde muitos “ni siquiera sabían hablarlo”. Para Gabriel García Márquez: “Sin embargo, los angolanos parecen imperturbables ante el tamaño descomunal de sus problemas. Tienen otra noción del tiempo y son pacientes, modestos, parsimoniosos y susceptibles, y todo eso dentro de un terrible sentido de la realidad”.

Talvez um dia eu “regresse” a Angola e a veja, finalmente, pela primeira vez. Seria a oportunidade perfeita para interpertar um pouco melhor a História e apaziguar-me com ela. Um amigo meu esteve recentemente em Luanda e ficou fascinado, pensando logo em voltar. Na minha família, a nostalgia e o imenso amor por África continuam dominando pensamentos, memórias e conversas. Creio, aliás, que temos, todos, muito que refletir e debater e, principalmente, sentir. Precisamos, com urgência, reconhecer o valor e o papel da “mãe África” nas nossas vidas e sociedades, pelo mundo fora. A García Márquez agradeço a narração e as emoções, de Lisboa a Luanda.

 

Patrícia Menezes Moreira

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