Impulso 2023: noite ibérica, feminina e elétrica em Caldas da Rainha

A febre eletroacústica de Angélica Salvi e Surma, entre outros nomes, invadiu o Centro Cultural e de Congressos (CCC) e a discoteca Spacy, no âmbito do Festival Impulso

Comparte el artículo:

Uma noite de sexta-feira que já prometia teve ainda lugar a (boas) surpresas de última hora. As DJs Princesa, Nuphar e DAKOI juntaram-se ao alinhamento já composto pelas espanholas Angélica Salvi, bb.wav e Elba – e pela portuguesa Surma – para animar mais um serão da Season Impulso 2023. Depois de outros artistas como A garota não, Expresso Transatlântico e a catalã Marina Herlop terem passado pelos palcos do festival em fevereiro e março, deixando para os vindouros a tarefa árdua de superar as suas performances.

A verdade é que, logo no aquecimento, percebemos que este 21 de abril seria mais uma data memorável. Angélica Salvi, salmantina de raiz que vive no Porto há já 12 anos, foi quem nos abriu a porta para o universo eletroacústico onde haveríamos de mergulhar o resto da madrugada. Com uma postura acertada e quase gélida, entrou em palco sem dizer uma palavra e sentou-se calmamente diante da sua harpa, rodeada de aparelhos eletrónicos, deixando-nos em suspense para o que haveria de acontecer. Ao primeiro toque, sentimo-nos convocados para uma outra dimensão, mais interior e transcendental, tão apaixonante quanto perturbadora. A certa altura, quando pegou em objetos tão diversos como um tubo de espuma e um arco de violino e começou a friccioná-los sobre as cordas da harpa, descobrimos uma proeza admirável: transformar um conjunto de ruídos difíceis de ouvir (e amplificados pela mistura eletrónica) na camada sonora perfeita para a melodia que vinha a seguir, elevando-os a sons muito próximos da natureza (é possível ter ouvido um bebé a chorar?).

Visualmente, tudo funcionou também. A tela imediatamente detrás de Salvi, que a circunscrevia à boca de cena, recebia feixes de luz em tons de azul e predominantemente frios, em sintonia com o ambiente espiritual e a aparência nórdica da intérprete. Nunca falou durante a atuação, mas também não precisámos disso. Bastou o sorriso singelo e o mudo “obrigado” que os seus lábios deixavam escapar entre as músicas para percebermos que o aplauso de quem a ouviu era tudo o que Salvi precisava naquele momento. “Não gosto muito de falar em público, por isso é que toco”, reconheceu depois a artista à conversa com o EL TRAPEZIO, em que ainda nos contou que veio apresentar essencialmente o seu mais recente trabalho, Habitat (2022). “É um álbum diferente do primeiro, em que estava à procura de uma certa calma e transcendência através do improviso. Neste segundo disco, tenho composições menos livres e experimento mais efeitos [eletrónicos]. Mas, no concerto, apresentei músicas dos dois”.

Embalados nesta direção melódica e ainda pouco arriscada de Salvi, faltou-nos o aviso à navegação para o que viria a seguir: demasiado potente. O público, visivelmente entusiasmado, não deu tréguas à emoção e vibrou com a agitação catártica de Surma. A artista da região – que deu os primeiros passos em Leiria, mesmo ao lado da cidade onde estávamos – trouxe consigo a estética musical arrojada de Alla, o álbum editado no ano passado, e outros dois músicos excecionais (João Hasselberg e Pedro Melo Alves) que não podiam ter sido mais bem escolhidos. Neste novo formato de trio, Surma levou-nos numa viagem exploratória por uma fusão de jazz, eletrónica, pop, country, além de outras influências. O palco expandiu-se para receber aquele momento, deixando cair a tela e substituindo-a por cortinas que ondulavam ao fundo da vista e compunham um cenário minimalista, equilibrando a garra e a energia constante que os músicos nos devolviam. Destacam-se as interpretações de “Islet” ou de “Maasai”, o single “mais velhinho” que mereceu uma boa reinvenção.

Depois do concerto, Débora Umbelino – a voz do grupo – parou para conversar connosco e não escondeu a “felicidade” de voltar à cidade termal. “Tenho uma relação com as Caldas desde os meus 17 anos. Uma prima minha estudava aqui Design Gráfico, tenho muitos amigos daqui e a cena cultural das Caldas inspira-me muito”. Sobre o álbum que apresentou, que conta com a colaboração de Angélica Salvi no tema “Biyelka”, afirma que é “arriscado” e tem “muitas texturas e dinâmicas”, daí a importância dos músicos que a acompanham “para não perder a força ao vivo”. Recordámos ainda a participação no Festival da Canção em 2019, com “Pugna”, e as consecutivas aparições como jurada e convidada musical até à edição deste ano, em que acompanhou Filipe Sambado e Primeira Dama numa homenagem ao cantautor Fausto. Para breve, espera, estarão as viagens a Espanha, onde já tocou e se sente “em casa”, e as colaborações com mais artistas vizinhos no próximo disco.

A noite não estaria completa sem entrarmos na pista da discoteca Spacy, onde atuaram duas DJs de Santiago de Compostela, bb.wav e Elba, seguidas das portuguesas Princesa, Naphar e DAKOI. Falámos com esta última e com as artistas santiaguesas, que nos avançaram o estilo mais pop e eletrónico dos seus sets, conjugado com influências várias. Das noites galegas, bb.wav e Elba trouxeram o reggaeton e outros ritmos da música latino-americana, como o funk brasileiro, enquanto a artista queer DAKOI, que estudou em Caldas da Rainha, invocou os seus gostos mais relacionados com a música dembow/batuque, o techno e o metal.

O Festival Impulso é promovido pela Pulsonar Associação, em coorganização com a Câmara Municipal de Caldas da Rainha e em parceria com a Escola Superior de Artes e Design do Politécnico de Leiria (ESAD.CR). Em 2023, nesta 5.ª edição, o festival troca o Parque D. Carlos I pelo auditório do CCC, programando mensalmente até dezembro uma season (temporada) com artistas como Dino d’Santiago, Trypas Corassão ou Bala Desejo.

Fotos: Nuno Conceição / Impulso

Noticias Relacionadas