A repentina fama do escritor brasileiro nos EUA acabou despertando também a curiosidade dos estadunidenses sobre a língua portuguesa. E tudo por causa de uma publicação no Tik Tok.
Já há alguns dias, o livro Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), do escritor brasileiro Machado de Assis, ostenta a liderança de vendas na categoria “Literatura Caribenha e Latino-Americana” da plataforma Amazon dos Estados Unidos, à frente de nomes como García Márquez, Borges, Cortázar e Octavio Paz. Na categoria “Novela Hispano-Americana”, é atualmente o quinto mais vendido. O nome da obra em inglês é The posthumous memoirs of Brás Cubas da editora Penguin Books, com tradução de Flora Thomson-DeVaux.
O estopim do recente boom de Machado nos EUA foi uma publicação da escritora estadunidense Courtney Henning Novak, feita no dia 17 de maio. Em seu perfil de Tik Tok, ela vem realizando um desafio chamado “Ler ao redor do mundo”: a partir de sugestões de seus seguidores, Novak está lendo um livro de cada país do mundo, em ordem alfabética por países. De Angola, por exemplo, leu O desejo de Kianda, do Pepetela; de Cabo Verde, a obra selecionada foi Chiquinho, de Baltasar Lopes da Silva (sempre traduzidas ao inglês). A sua lista está atualmente no Chad, mas a escritora promete chegar até o Zimbábue.
Depois de cada leitura, Novak divulga seu parecer nas redes sociais. Em geral, ela fala bem dos livros, destacando seus aspectos positivos. Mas com Memórias póstumas de Brás Cubas foi diferente. A escritora está tão emocionada com a leitura (tinha lido dois terços do livro no momento da publicação) que diz, em tom de brincadeira, que não sabe o que fará com o resto de sua vida depois de Memórias póstumas. E segue: “por que vocês não avisaram que este é o melhor livro já escrito?”. Os elogios acabam passando também pela vontade de aprender português. Novak declara: “agora tenho que aprender português”; “nem consigo imaginar como isso deve ser bom em português”; “agora, no meio de um projeto de leitura ao redor do mundo, tenho uma missão secundária de aprender português”.
Quando eu escrevia este artigo (22/05/2024), a publicação da escritora sobre Memórias póstumas de Brás Cubas no Tik Tok já contava com 171,5 mil likes, 7.005 compartilhamentos e nada menos do que 874,7 mil visualizações. Além disso, o vídeo já migrou para outras plataformas, como Instagram, Facebook e Youtube. Méritos para o Tik Tok, para Courtney Novak e, claro, para Machado de Assis.
Quando as redes sociais agem para o bem
Assim dá gosto ver uma rede social funcionando: um projeto simples mas bem pensado, que está gerando inúmeros conteúdos relevantes, executado com honestidade por alguém que entende do assunto e, principalmente, que leva resultados transformadores para o público.
O estadunidense influenciado pela publicação sobre o Machado (que pelo jeito são muitos) ganhou em conhecimento literário e cultural, ao abrir seus horizontes para uma tradição literária muito pouco divulgada internacionalmente, escrita em português. Imagino inclusive que uma parte desse público acaba de descobrir que o Brasil fala português, e não espanhol. O estadunidense que afinal lerá o livro vai ganhar ainda em conhecimentos de história e em crescimento pessoal, já que a obra estimula questionamentos e desvenda situações humanas e cenários provavelmente pouco conhecidos pelo público. E ganhará, por fim, o puro prazer de se ler uma boa história, extremamente crítica, criativa e bem escrita. Ou seja, os ganhos gerados pela publicação viral da Novak se dão em vários níveis (inclusive no comercial, já que a editora estadunidense deve estar feliz da vida com tamanha subida nas vendas).
Se alguém ainda tinha dúvidas sobre o alcance e o poder de comunicação das redes sociais, acho que esse exemplo contribui a confirmar que eles são realmente magníficos. Um simples vídeo de poucos segundos foi suficiente para causar todo esse rebuliço – lembrando que, no Brasil, essa notícia saiu em inúmeros meios, desde portais de internet de grande audiência até jornais tradicionais com a Folha ou o Estado de São Paulo. A própria escritora estadunidense já publicou outros vídeos comentando a inesperada repercussão de seu post sobre Machado de Assis.
Mesmo superficiais, as redes sociais podem ser boas, desde que os conteúdos sejam sérios e bem trabalhados. Aliás, isso também vale para a televisão, o rádio, os jornais e outras mídias. Todos podem ser bons ou ruins dependendo do conteúdo veiculado. A diferença das redes é que qualquer um pode publicar, o que tem um lado positivo e outro negativo. Do lado positivo estão projetos como “Ler ao redor do mundo”.
Machado é bom mesmo e isso não é novidade
No Brasil, Machado de Assis (1839-1908) sempre esteve entre os grandes. Talvez, o maior de todos. Em Portugal, também é muito conhecido e estudado. E sei ainda que seu nome é frequente em outros países lusófonos. Já vi muitas vezes escritores angolanos e moçambicanos citando o escritor do Brasil como referência.
Todo brasileiro conhece Machado desde adolescente. Ele faz parte do currículo escolar e algumas de suas obras costumam ser de leitura obrigatória. Eu devia ter uns quinze anos quando li Memórias póstumas de Brás Cubas pela primeira vez. Não me emocionou especialmente, ainda que seja muito marcante o fato de o narrador ser um personagem morto. Isso fica na nossa cabeça, porque é inusual. Mesmo morto, o narrador não dá trégua. É ferino, irônico, sarcástico e malicioso. Dialoga com o leitor, invade nosso espaço, não nos deixa em paz, é inquietante. Mas não estou aqui para fazer resenha da obra. Sigamos.
Depois, no final dos anos oitenta, tive aulas com o professor Ivan Teixeira, o maior especialista de Machado de Assis na época. Um grande privilégio. Já em Madri, há poucos anos, substituindo uma professora de Literatura da Universidade Complutense, li novamente o Memórias póstumas para poder preparar um curso sobre Realismo Brasileiro. Aí, a impressão foi outra daquela que tive aos quinze – uma leitura muito mais madura e completa, com atenção a vários aspectos que escapam a um adolescente. Pra não me alongar mais: na minha humilde opinião, Machado pode ser considerado melhor do que outros magistrais escritores realistas muito mais famosos do que ele, como Flaubert, Eça de Queirós e Dostoiévski, o que não é pouco.
Courtney Novak e eu não estamos sozinhos em nosso juízo sobre Machado de Assis. O escritor Salman Rushdie leu Machado quando tinha vinte anos. Ele cita o brasileiro e Jorge Luís Borges como essenciais para sua formação. E afirma: “qualquer coisa que falemos de autores como Júlio Cortázar, García Márquez ou Carlos Fuentes tem origem em Machado de Assis” (trecho de entrevista ao jornal Folha de São Paulo, 1996).
Outros fãs estrangeiros de Machado foram a escritora Susan Sontag e o lendário poeta beatnik Allen Ginsberg. Sontag eleva Machado à condição de “o melhor escritor já produzido na América Latina”, deixando Borges em segundo lugar. E se diz “assombrada de que um escritor de tal magnitude não ocupe ainda o lugar que merece na literatura mundial” (fragmentos de artigo de Susan Sontag publicados na revista de literatura Quimera). Quanto a Ginsberg, é bastante conhecida a comparação que fez entre Machado e Kafka, situando os dois escritores no mesmo nível de genialidade.
Outros dois nomes para terminar: o professor Harold Bloom, talvez o crítico literário mais famoso do mundo, também é devoto de Machado de Assis, conforme declarou diversas vezes. E o cineasta Woody Allen, divulgando há alguns anos uma lista com seus cinco livros preferidos, colocava entre eles o Memórias Póstumas de Brás Cubas. “Machado era um gênio, um escritor maravilhoso”, conclui Allen em uma entrevista ao jornalista Pedro Bial.
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Mesmo com alguns nomes de peso reconhecendo a qualidade de Machado de Assis, existe uma certa sensação de injustiça pela falta de conhecimento do público internacional (inclusive o latino-americano) acerca do escritor brasileiro. Isso se estende, aliás, à literatura brasileira em geral. Um país com tamanho peso cultural mereceria melhor divulgação de seus escritores.
Por isso se torna tão chamativa e importante a publicação feita no Tik Tok por Novak e toda a repercussão gerada a partir daí. Ações como essa parecem corrigir um pouquinho o abismo que separa a literatura brasileira do público internacional. Só temos a agradecer: obrigado, Novak, e boa sorte com suas próximas leituras no projeto “Ler ao redor do mundo”!
Sérgio Massucci Calderaro