Um acordo que vem a calhar (será mesmo?)

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Feliz coincidência: na mesma semana em que publiquei meu último artigo – reclamando maior intercâmbio cultural entre os países lusófonos –, foi assinado um compromisso de instituições oficiais de Portugal e do Brasil para valorizar a Língua Portuguesa.

Essa história começa em outubro de 2023, em Portugal, quando a antiga Casa da Escrita, em Coimbra, se transforma em Casa da Cidadania da Língua. A inauguração da “nova” Casa (que na verdade já existia) acontece em grande estilo: por parte do Brasil, comparece o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que inclusive recebe a medalha de ouro da cidade das mãos do Presidente da Câmara Municipal de Coimbra, José Manuel Silva – não entendi bem o motivo da honraria, mas vá lá, o gajo é Senador e assinou seu nome no dito acordo, o que já deve ser suficiente pra ganhar uma medalha. Por parte de Portugal, como já dissemos, estava o José Manuel da Silva, da Câmara de Coimbra, e também o português José Manuel Diogo, presidente da Associação Portugal Brasil 200 Anos. O evento, na época, teve boa cobertura da imprensa portuguesa.

O relatado acima foi o início. Agora, há poucos dias, assinaram outro acordo, desta vez em Brasília, com os três mesmos protagonistas já mencionados (o Silva, o Diogo e o Pacheco). Na página web da Câmara Municipal de Coimbra, podemos ler que, no dia 16 de abril de 2024, foi assinado um “protocolo de cooperação internacional no âmbito da valorização e da difusão da língua portuguesa como veículo de integração e expressão cultural, vetor fundamental para o fortalecimento das relações entre Coimbra e o Brasil”. Bonito, né?

Eu não quero ser chato, mas ao mesmo tempo não consigo deixar de sê-lo. É um dilema que vem me perseguindo toda a vida. Ser ou não ser chato, eis a questão. Crises de identidade à parte, o negócio é que a história nos mostra que é muito difícil acreditar assim, sem ressalvas, em tantos e tantos acordos assinados mundo afora, séculos a fio. Em minhas inúteis divagações, chego a vislumbrar estatísticas relacionadas aos acordos. Tal como temos, por exemplo, o levantamento do número de bebês nascidos no planeta a cada minuto, poderíamos também medir a quantidade de acordos assinados por minuto no mundo. A cifra provavelmente seria grande e estaria em aclive.

Se os números ascendentes de acordos assinados se confirmam, eles seriam inversamente proporcionais à harmonia mundial, já que as desavenças humanas parecem crescer de forma alarmante, chegando em muitos casos ao conflito bélico. A conclusão seria: quanto mais assinamos acordos, mais em desacordo estamos. Não dá pra evitar lembrar de Vinicius de Moraes: “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Com a licença do poetinha, dou aqui a minha versão: “a vida é a arte de assinar acordos, embora haja tantos desacordos pela vida”.

A triste impressão que tenho muitas vezes é a de que o evento da assinatura de um acordo, e sua respectiva divulgação pela imprensa, serve mais para arrefecer as demandas sociais e a opinião pública do que propriamente para colocar em prática o que foi acordado. Mas é possível que eu esteja exagerando e que o poço não seja assim tão fundo. Tentemos ser otimistas.

Analisando o acordo

No site do Senado brasileiro, encontramos na íntegra o documento, chamado oficialmente de Acordo de Cooperação Técnica e assinado pelo Senado Federal do Brasil (representado pela Diretora Geral Ilana Trombka), pelo Município de Coimbra (representado pelo Presidente da Câmara, José Manuel Silva) e pela Associação Portugal Brasil 200 Anos (representada por seu Presidente, José Manuel Diogo).

O Objeto do Acordo é interessante e até me parece ambicioso. Lê-se, por exemplo, que se pretende a “promoção de publicações literárias e acadêmicas e atividades de natureza culturais e científicas (…) enfocando especialmente a valorização, o reconhecimento e a difusão da língua portuguesa (…) dedicando-se ao fortalecimento das relações entre Brasil, Portugal e demais países lusófonos (…) que celebrem e ressaltem a riqueza e a pluralidade da lusofonia”.

Na Cláusula Segunda, falam sobre o Plano de Trabalho, dizendo que as partes envolvidas se obrigam a cumpri-lo. Esse documento vem anexo ao contrato e nele eu esperava ver as ações concretas que pensam adotar. Mas não foi bem isso que encontrei. Em seu lugar, mais generalidades que, sinceramente, muitas vezes me deram a impressão de ser um simples “corta-cola” de outros contratos.

Por exemplo, elencam as várias áreas de atuação do Plano de Trabalho:

  • Inclusão e diversidade
  • Construção de identidades
  • Intercâmbio cultural
  • Engajamento cívico
  • Língua nas diásporas
  • Educação e formação em língua portuguesa
  • Narrativas transacionais
  • Língua e tecnologia
  • Mulheres e língua portuguesa
  • As línguas minoritárias
  • Literatura infanto-juvenil
  • As artes performativas e língua portuguesa

Mais à frente, vemos as Metas a serem atingidas pelo Plano de Trabalho, onde podemos ler pelo menos uma pequena pincelada de algo mais concreto. São seis metas ao todo, com um breve texto para cada uma delas. Transcrevo-as aqui:

Promoção cultural

Realizar pelo menos dois eventos culturais anuais que celebrem a diversidade da lusofonia, incluindo festivais, exposições e concertos.

Intercâmbio

Desenvolver e implementar programas acadêmicos que alcancem pelo menos 500 participantes por ano, promovendo discussões históricas, filosóficas, jurídicas, legislativas, políticas, sociais e econômicas.

Publicações

Publicar anualmente pelo menos duas obras literárias ou acadêmicas de relevância em língua portuguesa.

Diálogos interculturais

Organizar anualmente pelo menos uma conferência internacional para debater temas relacionados à língua portuguesa, sua evolução, desafios e seu papel na sociedade contemporânea.

Desenvolvimento tecnológico

Cooperar no desenvolvimento de uma ferramenta tecnológica para a promoção da língua portuguesa.

Empoderamento feminino

Iniciar um programa específico para apoiar e promover a obra de escritoras lusófonas, visando a igualdade de gênero no campo literário e cultural.

Muito bem. Se todas essas ações forem colocadas em prática será ótimo. Mas há algo na Cláusula Décima Primeira que me chama a atenção: a vigência do acordo “terá início na data de sua assinatura e vigorará por 20 (vinte) meses, podendo ser prorrogado por igual período, por acordo entre as partes”. Ou seja, vai de 16/04/2024 a 16/12/2025. A não ser que a vigência seja realmente prorrogada, não haverá tempo hábil para tão ambiciosos objetivos. Algumas das metas elencadas acima falam de ações anuais, mas a vigência do contrato não chega sequer a dois anos.

Além disso, metas como a realização de festivais e concertos internacionais ou também o desenvolvimento e implementação de programas acadêmicos não são ações que se fazem da noite para o dia. Qualquer um que já participou da organização de um festival internacional ou mesmo de um congresso internacional sabe bem do que eu estou falando.

Mas não é só isso. Ao final do Plano de Trabalho, no item Fases de Execução, lemos que a primeira etapa será:

“Planejamento: definição de estratégias e cronograma, que inclui também a formação de parcerias e a elaboração de programas específicos”.

O planejamento, obviamente, é a primeira fase de qualquer projeto. O problema, novamente, é o tempo de vigência do contrato. A “definição de estratégias” e a “elaboração de programas específicos” são ações que demandam reuniões e concórdia entre todos os envolvidos, o que muitas vezes leva tempo. Mas, principalmente, a “formação de parcerias” é algo que costuma ser complexo e pressupõe arrastadas negociações. Ou seja, com tantos preâmbulos, que tempo sobrará, dentro desses vinte meses, para executar as ações? Mais do que uma possibilidade, prorrogar esse contrato será um imperativo caso exista a real intenção de se chegar aos objetivos traçados.

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Espero muito estar errado em todas as minhas desconfianças e desejo de coração que todas essas ações saiam do papel e se tornem realidade, atingindo os objetivos propostos. Isso seria o ideal. Um dos nossos papéis aqui no EL TRAPEZIO é justamente esse, o de cobrar e monitorar as ações alardeadas pelos órgãos oficiais. São eles que têm o dinheiro e a estrutura para fazer acontecer. Que o façam, pois. Seguiremos acompanhando o desenrolar dos fatos e temos a esperança de, em breve, trazer aos leitores notícias sobre as atividades concretas realizadas a partir desse contrato, que poderia inclusive servir, mais adiante, como um bom exemplo a ser adotado de forma mais ampla em acordos de difusão cultural entre todo o universo da iberofonia, incluindo o português e o espanhol. Esperamos que assim seja.

Sérgio Massucci Calderaro

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