18/11/2025

Sevilha acolheu a exposição ‘Sem Raia’, uma radiografia da arte contemporânea ibérica

Da pintura à performance, 3 artistas andaluzes e 2 portugueses convergiram as suas linguagens artísticas para explorar a fronteira entre Portugal e Espanha

Comparte el artículo:

Bluesky Streamline Icon: https://streamlinehq.comBluesky
Instalación artística de la exposición Sem Raia en Sevilla

Popularmente conhecida como a Raia, a fronteira entre Portugal e Espanha pode ser entendida como a linha que, simultaneamente, separa e une ambos os países. Foi neste contexto de união que surgiu a exposição ‘Sem Raia’, apresentada no Consulado-Geral de Portugal em Sevilha. Com curadoria de Adolfo Sánchez Flores, diretor artístico da Red House Art, e organizada em colaboração com a Galeria NAVE, a mostra reuniu o trabalho de 5 artistas de ambas as nações.

O título, ‘Sem Raia’, funcionou como metáfora da proximidade entre Portugal e Espanha. “Os artistas, em diálogo, transformaram o significado de ‘Raia’, que em português quer dizer ‘fronteira’, na sua tradução fonética para o espanhol, ‘Linha’”, esclareceu Mercedes Cerón, diretora da Galeria NAVE, de Lisboa. Este enfoque linguístico e identitário permitiu explorar um espaço simbólico onde a arte representou “a memória e o sentido patrimonial de um território ibérico comum”.

“Pretendíamos traçar uma breve radiografia da arte contemporânea na Península Ibérica e, para isso, selecionámos 3 artistas espanhóis – Arturo Comas, Norberto Gil e Juan Miguel Quiñones – e 2 portugueses – Tomaz Hipólito e Francisco Correia -”, explicou Adolfo Sánchez. Partindo de uma ideia comum – a ligação à Raia -, “cada um destes artistas se expressou através de disciplinas que diferiam entre si não apenas do ponto de vista técnico, mas também concetual”.

Interior del Consulado-Geral de Portugal en Sevilha durante la exposición Sem Raia
Visitantes a observar a exposição. FOTOGRAFIA DE GALERIA NAVE

Da pintura à performance, passando pelo vídeo, a colagem, a escultura e a instalação, as diferentes linguagens artísticas convergiram no átrio do emblemático edifício do Consulado-Geral de Portugal em Sevilha. A exposição dialogou com o espaço que a acolheu através de um jogo de contrastes. “O estilo neobarroco do antigo Pavilhão Português da Exposição Ibero-Americana de 1929 contrapôs-se ao carácter contemporâneo das obras, o que fez com que estas se destacassem”, afirmou o curador.

Para além do carácter “arriscado” de uma mostra idealizada para “surpreender uma cidade tão tradicional como Sevilha, mais habituada ao barroco e à arte religiosa”, a complexidade acrescida de ocupar um espaço histórico – sujeito a rigorosas normas de preservação – requereu a escolha de obras que pudessem ser exibidas de forma autossustentável, sem comprometer a integridade do edifício. A conjugação de todos estes fatores levou Adolfo Sánchez a reconhecer a “excelente oportunidade que esta exposição ofereceu aos sevilhanos para conhecerem este monumento, que tantas vezes passa despercebido aos habitantes da capital andaluza, habituados a associá-lo unicamente aos serviços consulares”.

Tomaz Hipólito, ‘Desenho’ (do original em inglês, ‘Draw’)

Através do vídeo, da performance e da pintura, Tomaz Hipólito inaugurou a exposição com uma intervenção ao vivo. Num mural em branco, projetou um vídeo de sua autoria – onde juncos se moviam lentamente – para, em seguida, reinterpretar ditas imagens, “mapeando o gesto de forma a criar um novo território, intervalo, situado entre a subjetividade e a experiência que daí ocorre”, explicou o artista português.

A sua peça estabeleceu um diálogo direto com o conceito de ‘Sem Raia’ – sem linha, sem fronteira – ao explorar a ideia de que sem o traço não há arte; que toda criação começa precisamente na linha que une e/ou separa. Embora o vídeo não tenha sido gravado na Península Ibérica, os juncos evocavam o rio Guadiana. Segundo o curador, este detalhe permitiu expandir o sentido da obra para além da geografia, bem como propor uma metáfora visual sobre a fluidez dos territórios partilhados.

Visitantes observando a exposição Sem Raia no Consulado-Geral de Portugal em Sevilha
Performance Tomaz Hipólito no dia da inauguração. FOTOGRAFIA DE GALERIA NAVE

Norberto Gil, ‘Museu Visigodo I, II, III e IV’ (do original em espanhol, ‘Museo Visigodo I, II, III y IV’)

Norberto Gil apresentou uma proposta que conjugava pintura e arquitetura. Inspirada num projeto inacabado dos arquitetos Cruz y Ortiz para o Museu de Arte Visigodo em Toledo, a peça partiu de um conceito bidimensional, no qual se observavam elementos da planta circular e do alçado do edifício, para, posteriormente, se transformar em quatro pilares que preservavam a essência arquitetónica do projeto original.

A obra conectou-se à história da Península Ibérica ao evocar o Reino Visigodo, época na qual a Raia ainda não existia. Famosa por ser a fronteira mais antiga da Europa, esta começou a perfilar-se em 1267 com o Tratado de Badajoz, assinado por D. Afonso III e Afonso X de Castela e Leão, até que o Convénio de Limites de 1926 veio fixar o traçado que detém atualmente. Ao remeter para um tempo anterior à sua existência, o arquiteto sevilhano jogou com a tridimensionalidade da sua obra, onde a noção de ‘linha’ (fonética espanhola de ‘Raia’) estava simultaneamente ausente.

Obra de arte contemporánea en la exposición Sem Raia en Sevilla
Museu Visigodo I, II, III e IV’ (do original em espanhol, ‘Museo Visigodo I, II, III, IV’), 2025, de Norberto Gil. FOTOGRAFIA DE GALERIA NAVE

Juan Miguel Quiñones, ‘Coleção Gelados Brancos’ (do original em espanhol, ‘Colección Helados Blancos’)

Inspirado pela “irmandade territorial ibérica que partilhamos entre Portugal e Espanha, – não apenas agora, mas também como povos que outrora conquistaram territórios ultramarinos”, Juan Manuel Quiñones, apresentou uma série de esculturas em mármore branco e travertino num diálogo entre a cultura pop e a monumentalidade clássica.

Recorrendo à técnica da ‘pietra dura’, de tradição greco-romana, o artista trabalhou sobre a memória coletiva, a infância e os verões partilhados entre as duas nações. O resultado foi um conjunto de 4 esculturas em forma de gelado, cujos interiores revelavam cores cromáticas que aludiam às bandeiras de Portugal e Espanha – amarelo, vermelho e verde -, enquanto o azul homenageava “os grandes navegadores que nos fizeram reis do mar, numa mesma época”, indicou o escultor de Málaga.

Esculturas de mármol en forma de helados en exposición de arte contemporáneo.
Coleção Gelados Brancos’ (do original em espanhol, ‘Colección Helados Blancos’), 2025, de Juan Miguel Quiñones. FOTOGRAFIA DE CATARINA CASTANHEIRA

Arturo Comas e a cadeira Gonçalo

Conhecido por desconstruir objetos do quotidiano e elevá-los a esculturas conceptuais, Arturo Comas prestou, desta vez, homenagem à icónica cadeira Gonçalo, fabricada pela ARCALO. No seu ateliê, o artista sevilhano desconstruiu a cadeira mais famosa de Portugal – presente nas esplanadas de norte a sul do país – e recriou-a com precisão industrial. Poliu e pintou cada detalhe para lhe conferir movimento e uma presença escultórica que sugeria formas quase orgânicas, semelhantes a aracnídeos.

A obra articulou-se entre design, arte contemporânea e memória coletiva, ao mesmo tempo que subverteu a funcionalidade original da cadeira, transformando-a num objeto de contemplação artística. Ao homenagear o mestre serralheiro Gonçalo Rodrigues dos Santos, criador da peça popularizada durante a década de 1950, Comas prestou igualmente tributo à cultura popular portuguesa e suscitou uma reflexão estética sobre o uso e a perceção dos objetivos do quotidiano.

Escultura de una silla desarmada en una exposición de arte contemporáneo.
‘Sem título (04B) (do original em espanhol, ‘Sin título (04B)’), 2022, de Arturo Comas. FOTOGRAFIA DE RED HOUSE ART

Francisco Correia, ‘Promessas’

Utilizando canetas pigmentadas sobre papel colado em tela, o trabalho de Francisco Correia explorou os anseios capitalistas contemporâneos. “Por um lado, as imagens referentes à vida para além da Terra são o mais próximo que a realidade está de tocar a fantasia; por outro, estas são frequentemente utilizadas para publicitar produtos que prometem uma mudança de ‘lifestyle’ (maioritariamente dirigidos ao público masculino), como aparelhos eletrónicos, carros, relógios, entre outros”, clarificou o artista português.

Correia foi o artista mais jovem da exposição e, embora a sua obra não dialogasse diretamente com o imaginário da mostra, a sua ligação com Espanha garantiu-lhe o convite para participar. Natural de Lisboa, viveu vários anos em território espanhol, onde apresentou diversas obras. Reconhecido pelo seu olhar crítico sobre a sociedade, “o seu trabalho transformou a publicidade em material de reflexão e convidou o público a repensar o papel da cultura de consumo”, afirmou Sánchez.

Obra de arte expuesta en la exposición Sem Raia en Sevilla
‘Promessas’, 2023, de Francisco Correia. FOTOGRAFIA DE RED HOUSE ART

Uma fronteira cada vez mais diluída

Do passado ao futuro, da realidade à desconstrução, os artistas de ‘Sem Raia’ exploraram múltiplos ângulos e interpretações da fronteira mais antiga da Europa. Para o curador, esta encontra-se “cada vez mais diluída desde que ambos os países aderiram à União Europeia, pois atravessamo-la todos os dias e o intercâmbio cultural tem vindo a aumentar”. Hipólito partilha esta perspetiva ao não interpretar a Raia como “uma barreira, mas sim como um local de ligação e união”. Quiñones vai um pouco mais além e dissolve ainda mais este conceito ao considerar que, nos dias de hoje, falar de uma fronteira entre Portugal e Espanha “carece de sentido; é quase um conceito medieval”.