Portugal celebra a sua independência duas vezes por ano: a 5 de outubro (coincidindo com a celebração da implantação da república em 1910, que referirei noutro artigo) e a 1 de dezembro. No dia 5 de outubro de 1143 foi assinado o Tratado de Zamora, assinalando o fim da vassalagem de Portugal perante o reino de Leão. Quase cinco séculos mais tarde, no dia 1 de dezembro de 1640, terminou a União Ibérica que começara no ano 1580. Os meus conhecimentos de história são limitados, pelo que escrever sobre isso evitando imprecisões será difícil. Nomes como o de José Hermano Saraiva oferecerão uma visão muito mais pormenorizada da história portuguesa.
No entanto, há algo que me preocupa ainda mais: falar deste período histórico é impossível sem referir os sentimentos nacionalistas mais fortes em Portugal e as suas razões de ser. Assim, peço a compreensão do(a) leitor(a) no sentido de ver este texto como uma tentativa de explicar qual é a típica perspetiva portuguesa da história. A intenção não é justificar esses sentimentos nacionalistas, celebrar esta data histórica como simples afirmação da identidade portuguesa contra Espanha, ofender ou causar problemas. Só quero tornar mais claras as discrepâncias que existem entre os nossos países até aos dias de hoje, para que recordemos a história sem guardarmos rancores uns contra os outros, e para compreendermos o legado dos nossos antepassados procurando construir um futuro mais positivo baseado no entendimento mútuo.
Não é possível compreender a restauração da independência portuguesa sem falar de D. Sebastião, aquele que foi o rei português de 1557 a 1580, data do seu desaparecimento. D. Sebastião, ou como eu o imagino com base naquilo que recordo, era um rei que desejava afirmar o seu poderio e que por isso liderou uma cruzada contra Marrocos. Mesmo tendo sido avisado do provável insucesso da sua campanha, liderou o seu exército em combate… e desapareceu. A lenda portuguesa de D. Sebastião é que ele algum dia voltaria para salvar Portugal. Salvar Portugal de quem? De Castela.
D. Sebastião não deixou filhos. A consequente crise de sucessão na monarquia portuguesa acabou por resultar na união dinástica de Castela e Portugal, o que significava o fim da independência portuguesa. A princípio, a união foi positiva: Portugal era respeitado, tinha uma certa autonomia e mantinha a sua própria língua. Mas o tempo foi deteriorando este status quo, acabando Portugal por se sentir oprimido, pagando impostos altíssimos e enviando os seus homens para guerras nas quais não queria participar. Assim, Portugal revoltou-se, recuperando a independência entre 1640. Diz-se também que a independência portuguesa não teria sido possível sem o sacrifício da Catalunha, uma vez que Castela não podia ter mantido ambos os territórios. Escolhendo conservar a Catalunha, teve de perder Portugal. Esta é uma das razões pelas quais os nacionalistas portugueses favorecem a independência da Catalunha e os nacionalistas catalães também querem que Portugal permaneça independente.
Crescer em Portugal implica ouvir falar muito dos conflitos entre os nossos países: a batalha de Aljubarrota de 1385 (que deu origem à famosa Aliança Anglo-Portuguesa), as guerras napoleónicas (na sequência das quais Portugal perdeu Olivença) e muitas outras, entre as quais se inclui, naturalmente, a União Ibérica. É claro que o povo português não deseja regressar a um período histórico tão violento. De um modo geral, prevalece hoje em Portugal o desejo de cooperar com Espanha a todos os níveis, mas não abdicando mais uma vez da independência. É isso o que o 1 de dezembro representa para nós.
O que sinto eu? Francamente, sinto tristeza. Tristeza por tanta gente ter morrido de ambos os lados. Tristeza pela ganância de todos os reis, de toda a Europa, que colocaram os ganhos pessoais, a fama e o lucro acima do bem-estar do povo. Tristeza pela utopia de uma Península Ibérica sem nacionalismos, sem rancores, sem qualquer tipo de ressentimentos, tanto dentro da própria Espanha como entre ela e Portugal… Uma Ibéria sem ódio, sem raiva, sem corrupção, sem qualquer tipo de violência, em paz com o seu próprio passado, olhando apenas para o futuro. Para mim, o 1 de dezembro é a celebração da dignidade do povo português, mas também a tristeza por tudo aquilo que podíamos ser e não somos por termos, de ambos os lados, passado nove séculos sem saber construir a concórdia verdadeira, a aceitação mútua, a celebração da diversidade cultural ibérica em vez da afirmação própria perante o vizinho. Fizemos, ambos os países, mais pelo fascismo do que pela concórdia. Felizmente a União Europeia ajudou-nos a corrigir alguns dos nossos erros, contribuindo para o conhecimento mútuo.
Acho irónico, também, que o auge da história espanhola, o Século de Ouro, tenha em grande medida coincidido com o período da União Ibérica. Quando nos unimos, nunca ninguém foi mais forte, mas quando nos separámos, foi o princípio do fim para Castela. É como dizer que Espanha, sem Portugal, não consegue alcançar tamanha grandeza. E isso também faz os portugueses temerem possíveis ambições castelhanas ainda hoje, caso o nacionalismo espanhol venha a olhar para Portugal como um simples vassalo. Infelizmente vejo isso como um cenário muito mais plausível do que uma nova “União Ibérica” baseada na aceitação mútua e no desejo genuíno de criar um país melhor para todos.
Mas uma coisa está clara: a maneira como todos os grandes impérios terminam é com guerras infinitas, corrupção descontrolada e gastos insustentáveis. Foi isso o que aconteceu ao império romano e a todos os outros, incluindo o império espanhol. Se o ódio, a força bruta e a ganância são as únicas bases de um império, a história já demonstrou que esse império terá o seu tempo, terá a sua suposta “glória” paga com rios de sangue, mas acabará, inevitavelmente, por fracassar. Oxalá tivéssemos nós compreendido isso antes da carnificina da nossa Guerra do Ultramar. E Deus queira que saibamos sempre tratar-nos mutuamente como irmãos, não só os ibéricos, mas os europeus em geral. Porque quem celebra a independência portuguesa também precisa de ter em mente as ideias de uma Europa unida e tratar essas ideias da mesma maneira que trata um possível ressurgimento da União Ibérica.
Eu sou iberista. Ou seja, sou a favor da cooperação entre Espanha e Portugal dentro da legalidade e do respeito pela soberania dos nossos países. Sou contra todo o ódio entre nós. Mas abdicar da independência portuguesa? Se não é isso o que o povo português quer, então não. A dignidade do povo português, com ou sem uma “União Ibérica”, com ou sem uns “Estados Unidos da Europa”, será sempre prioritária. Por essa mesma razão, espero que todos os espanhóis compreendam que Portugal é um país irmão, igual em direitos e dignidade, não inferior. E da mesma maneira espero que o resto da Europa compreenda que nós, os “do sul”, também somos europeus dignos. Uma perda de soberania e independência portuguesa, na conjuntura de hoje, só implicaria uma vitória para a corrupção em toda a Península Ibérica, o que seria prejudicial não só para o povo português, mas também para todos os espanhóis. A União Ibérica só poderia ressurgir se essa corrupção não fosse nos nossos países a realidade que infelizmente é. Idem aspas para a Europa.
Mas cem vezes mais do que sou iberista, sou contra todo o belicismo e toda a opressão. Se é verdade que a União Ibérica lhe causou tanto sofrimento, então Portugal merecia a sua independência. Ainda assim, entristece-me todo o sangue derramado pelas vítimas, de ambos os lados, dos caprichos dos poderosos do seu tempo. Entristece-me que a violência fosse necessária, especialmente entre irmãos. Oxalá Portugal, Espanha e a Europa em geral, no contexto dos dias de hoje, saibam recordar que o preço a pagar pelo fascismo e pelo belicismo é um preço atroz, trágico e desumano, e que causa mais separação do que união.
João Pedro Baltazar Lázaro