Há um ano, quando o EL TRAPÉZIO publicou que o Coronavirus tinha chegado a Macau (China), a praga e as quarentenas eram algo de um mundo passado que nunca voltaria. Dois meses depois, o descrédito da crença na segurança da saúde cairia como um meteorito. Ortega y Gasset estabeleceu diferenças entre ideias e crenças. As ideias seriam pensamentos que controlamos e produzimos. As crenças seriam, segundo Ortega, pensamentos que internalizamos sem nos darmos conta e que não questionamos porque vêm de gerações anteriores.
Em Março chegaria o redemoinho viral, com o transbordamento do hospital e o voo do ninho de vespas, recuperando a tradicional solução de quarentena. Tudo trancado em casa. Foi a tempestade perfeita para capitães e adeptos das teorias da conspiração para saírem dos esgotos para fazer um negócio ideológico da tragédia diante do cenário de ruptura da crença na segurança sanitária. Além disso, isto ocorreu na época de maior poder da extrema-direita desde as décadas de 1930 e 1940. As máquinas lubrificadas de notícias falsas, que instrumentalizaram as redes sociais, espalharam à direita e à esquerda, teorias da conspiração que caíram num terreno político e social fértil, com a ciência temporariamente desfeita e um inimigo a vencer: a China.
Porém, a aposta na necropolítica e na dissonância cognitiva é um tanto arriscada porque pode ajudar o fanatismo no curto prazo, mas sempre há perda de apoio porque o desprezo pela vida leva a poéticas justiças que servem de ensino para alguns. No Brasil há vários casos de figuras públicas e apresentadores de televisão a favor de se enfrentar o Coronavirus sem a protecção necessária e tomando cloroquina, o que levou ao cemitério. O festival de conspiração gerou mudanças comportamentais como a experimentada por Iker Jiménez, que mostrou às suas presas de extrema-direita enquanto aumentava sua audiência no YouTube. As teorias da conspiração são assim porque são hipóteses construídas sobre outras hipóteses que ainda não foram validadas. A cadeia causal não existe mas é compensada e disfarçada com magnetismo pessoal e reversão do ónus da prova.
O certo é que um ano depois, a ciência está recuperando terreno rapidamente devido às vacinas. No próximo verão veremos o nível da vitória que a ciência pode ter alcançado sobre o Coronavirus e os seus conspiracionistas. Numa menor escala, tem havido uma teoria da conspiração sobre a suposta origem plástica da neve, pois esta nevasca sem precedentes, para a memória dos vivos, foi mais uma brecha para a festa dos medíocres que se sentem enganados pelo poder.
Nos Estados Unidos, QAnon e os Trumpistas, em geral, fizeram o Agosto com o Coronavirus mas a pilha de mortos caiu sobre as suas cabeças. Eles chegaram ao fim da estrada. O fenómeno pode levar a um terrorismo mais violento do que aquele que aconteceu no Capitólio, mas vai sentir o incentivo do FBI. A negação também pode se traduzir numa recusa significativa em aplicar a vacina, porém muitos vão acabar indo um pouco mais tarde e escondendo-se. A Big Tech (Amazon, Apple, Google, Youtube, Facebook, WhatsApp,Twitter e Microsoft), depois de ganhar muito dinheiro com a nova forma de comunicação política desenhada por Steve Bannon, viu como a merda começou a espirrar neles. O Twitter acaba de colocar um sinal de engano num tweet do Ministério da Saúde do Brasil. Esse é o nível do desastre. O Governo Bolsonaro foi esmagado e derrotado pelo Governo de São Paulo e pelos Institutos de Pesquisa e, finalmente, a vacina chinesa e a vacina Oxford foram aprovadas.
Do ponto de vista democrático, o facto de esses submundos dominarem partes da opinião pública é um problema porque interrompe o debate político racional. É verdade que a dissonância cognitiva não vêm apenas deste tipo de fanatismo pois existem outros. Em todos os lugares servem feijão. É por isso que o Direito e a Ciência, numa perspectiva crítica (para evitar derivações como as do nazismo), são fundamentais para que as narrativas ideológicas tenham uma âncora na realidade material. Para jogar xadrez tem que aceitar as regras. Da mesma forma que para um debate, o procedimento deve ser previamente acordado. Com alguém que defeca e urina no tabuleiro, não é possível jogar. O mesmo acontece no uso das redes sociais. Alguns compararam o direito do Twitter de censurar Trump ao direito de admissão do proprietário de uma loja. Não é exatamente assim. Isto é sobre um cliente (Trump) que deliberadamente entra e faz suas necessidades no chão da loja e exige o direito de poder comprar. Não existe o direito de mentir, enganar, gozar, fomentar a violência e, em última instância, fazer-se de vítima.
Sem dúvida que o debate sobre a regulação das Big Tech deve ser feito. As redes sociais têm sido usadas para o bem e para o mal. A defesa da liberdade de expressão de Trump (muito mais do que a dos seus seguidores), por um punhado de militantes de esquerda no mundo. Se excluirmos dois ou três ingénuos, a maioria são niilistas e irresponsáveis que apostam na catástrofe. Eles querem ver o apocalipse acontecer. É a vingança contra um Império, esquecendo que existe um povo e que um conflito interno causaria danos colaterais em todo o mundo. Tudo indica que, com a derrota de Trump, a vacinação geral e a reacção das Big Tech, os adeptos das teorias da conspiração voltarão por um tempo ao seu estado actual (embora o trauma do “vírus chinês” vá persistir). A humanidade reconstruirá a crença de que quarentenas e pragas são coisas do passado.
O jornalista brasileiro Kiko Nogueira exemplificou a situação no Brasil como estando numa sala, com luz apagada e porta trancada, com um psicopata com uma faca a solta. Agora, também, sem o “oxigénio” que falta nos hospitais de Manaus. Podemos pensar se preferimos estar na sala com um Trump, André Ventura, Abascal ou um Bolsonaro. Também pode ser com um Zuckerberg, Jack Dorsey ou um Bill Gates. Parece muito básico mas esse é o tamanho do declínio dos últimos cinco anos na escala global.
Por último, e mudando de assunto, apelo ao Ministério da Saúde espanhol para que se coloque à disposição do Ministério da Saúde português, no espírito de solidariedade e coordenação da última Cimeira Ibérica, para eventualmente disponibilizar camas em hospitais espanhóis para pacientes portugueses que estejam infectados com o Coronavirus devido a saturação que o SNS está a sofrer. Outra opção seria a ajuda da Unidade de Emergência Militar para construir hospitais de campanha.
Pablo González Velasco