Um ténue rastro, fino mas perceptível, situa Joan Margarit no Festival Literário Internacional de Óbidos e a Casa Fernando Pessoa, entre nostalgias mas sem desassossego, há cerca de cinco anos atrás, talvez em 2016. Não tenho certeza se essa foi a sua última visita ao país irmão ou não. O esquecimento trai como o tempo os fios que nos prendem a tantos acontecimentos precipitados. Só os poetas não erram. O bardo catalão, espanhol, ibérico, europeu e mundano seguiria o rasto de um projecto editorial de 2009, visto e não identificado, denominado OVNI, no qual foi publicado o seu livro, a “Casa da Misericordia”. Ora, garanto-me nos dados, foi numa feliz tradução de Miguel Filipe Mochila, para “Língua Morta” (2015), que faria do espanhol um poeta de culto entre os cultos portugueses. Isso foi antes, claro, da doença traiçoeira e devastadora, diante da dignidade de um mito que se sabia homem e era poeta.
Agora, eu o encontrei novamente os seus poemas. Tranquila, imensa na simplicidade pagã da vida, naquela maneira de contar tristezas sem lamentos, ignorando boatos e notícias. Procurei por ele e encontrei. Nas palavras é ressuscitado o poeta e a obra de Joan Margarit será para sempre. Por meio dele sabemos que: “Da pobreza vem a minha alegria”.
O autor constrói universos com as palavras, torna-os particulares e íntimos e depois os compartilha. Para Joan Margarit, pelo que li de pessoas próximas, o sorriso vinha das suas mãos, da sua bondade. Eu só o conheci na sua escrita.
Margarit sussurrou a beleza de uma verdade que deixou brilhar como luz entre as suas feridas. Conviveu numa harmonia bilingue e com uma voz única, sóbria e iluminada que usou para indagar quem era. Escreveu, construiu, compôs sobre o que realmente importa: a vida, o passar do tempo, os traços, a alteridade e a posteridade que se tornam permanentes na evocação do amor fraterno. Encontrei-o num canto, ali mesmo, em “Joana”, aproximei-me dele com a prudência considerada de quem se aproxima de um bardo ferido e medroso. Fui cativado pela sua expressão directa e crua, pela sinceridade de um ser comprometido com experiências profundas, disposto a se projectar com sabedoria, sem ser enganador.
“Tantas coisas estão faltando. / Preencher assim os dias / momentos feitos de esperar pelas tuas mãos, / de sentir saudades das tuas mãozinhas, / que tantas vezes me agarraram. / Temos que nos acostumar com a sua ausência. / Já passou um verão sem os teus olhos / e o mar também vai se acostumar. / A tua rua, ainda que por muito tempo, / vai esperar, à tua porta, / com paciência, os teus passos. / Ele não se cansa de esperar: / Ninguém sabe esperar como uma rua. / E esse desejo enche-me / para você tocar-me e para olhar para mim, / para dizer-me o que fazer da minha vida, / enquanto os dias vão passando, com chuva ou céu azul, / já organizando a solidão”. Margarit veio a mim com uma oportunidade, com uma dupla vocação, como uma maré para preencher um vazio. No seu trabalho, descobri como tantos outros, que não estava mais sozinho. Ao ler sobre ele, soube que aqueles que são verdadeiramente amados nunca se perdem e que os outros também sofrem calafrios silenciosos que podem ser compartilhados com uma subtil delicadeza.
A alegria chegou a Margarit com a sua aparente humildade, desde a simplicidade de saber aplaudir o mais natural, como a água que corre “se espalhando pelos fossos feitos com a enxada”. Isto para escolher a liberdade de viver juntos em catalão e espanhol; de saber vislumbrar o seu “Animal da Floresta”, livro inédito das fontes em que nos saciaremos mais uma vez com a sede de misericórdia, referências e sinceridade tão necessárias nestes tempos de confusão e tédio.
Uma anedota. Margarit disse que o regime de Franco impôs-lhe o espanhol através da escola monolingue e que não tinha a intenção de devolvê-lo.
Continuarei encontrando Margarit nos seus poemas, sem necessidade de efemérides. Farei isso antes que os seus versos evaporem na abundância e no barulho. “Vivemos à mercê / daquilo que éramos ignorantes de nós próprios”. A lição de uma professora de Cálculo Estrutural da Escola de Arquitectura de Barcelona é desenhada como uma descoberta que quero compartilhar para sempre. Aprendi a minha lição e sorrio sem alarde.
Alberto Barciela – Jornalista