Gonçalo Castro (Lisboa, 1980) é um apaixonado pelo som, seja na forma falada ou na melodia de uma canção. Desde cedo à beira dos discos e das cassetes, o gosto pela rádio foi também crescendo ao longo da juventude, levando-o, um dia, a descobrir o seu porto de abrigo: o estúdio e as relações que se formam dentro dele. Antes disso, vendeu discos aos 18 anos, estudou Comunicação Social e Marketing com vertente de Jornalismo e seguiu para uma editora onde trabalhou com artistas, apresentando-os às rádios, às televisões e aos jornais. Escreveu para estes últimos, mas também em blogues e até fanzines, onde aprendeu a escutar os outros nas entrevistas e a fundamentar uma opinião nas críticas de discos. É seguro dizer que a comunicação, a par com a música, é mesmo a sua praia.
Hoje um fazedor de muitas coisas, sempre entre os média e a música, produz e colabora mais frequentemente em programas de rádio, onde o podemos ouvir a falar sobre música – claro está – dos mais variados estilos e origens. Confessa-se amante da cultura espanhola e, ao lado do grande amigo Ángel Carmona e de outros, vai inventando e descobrindo muitos – e novos – mundos dentro da Ibéria, sempre na tentativa de os unir e de mostrar aquilo que partilham. No âmbito do MIL, conferência e festival de música que decorreu no final de setembro em Lisboa, foi mesmo o impulsionador de uma ligação mais aprofundada entre quem trabalha na indústria musical ibérica e da música que se faz nesta península com o público. Conversamos com ele e vamos ao fundo deste seu iberismo musical.
Qual é a tua primeira memória com música?
Bem, é sempre difícil… Mas aquela que me vem de uma forma mais presente é a de ouvir discos aos domingos, em casa. A minha mãe e as minhas irmãs punham música a tocar, ainda em vinil. É uma memória um pouco difusa, mas lembro-me que a minha mãe ouvia Elis Regina, Gal Costa; as minhas irmãs ouviam os Pink Floyd e os Beatles; e o meu pai, quando não estava a trabalhar, ouvia muito Carlos Paredes, Carlos do Carmo e outros artistas portugueses. Era essa miscelânea que eu ouvia em casa.
Imagino que tenha nascido daí o “bichinho” da rádio.
Sim, isso surge também de ouvir muita rádio. Era a minha companhia. O meu pai, engenheiro informático, sempre teve acesso à tecnologia, e então eu tive CDs em casa mal eles apareceram. Na altura, ele também comprou as cassetes, o gravador, o sistema sonoro completo. Com isso, eu ouvia os programas da rádio, gravava as músicas que passavam e criava os meus próprios programas, fazendo de locutor de rádio. Lembro-me perfeitamente, com o meu melhor amigo na altura, de inventar entrevistas, fazer sketches de humor, que entregávamos depois às colegas da escola. Depois, tive a sorte de, na minha escola secundária, aos 16 anos, fundar a rádio e o jornal da escola. Sempre tive esta relação muito forte com os media e com a música.
Agora, neste último MIL, moderaste uma mesa-redonda em torno do iberismo musical. Fala-me da tua relação com Espanha e com a música deste país.
É uma relação antiga. Desde miúdo que gosto de visitar Espanha. O meu pai, lá está, era programador informático num banco que se tornou ibérico, o Santander, que oferecia colónias de férias aos filhos dos empregados. Então lembro-me de ir para essas colónias aos 15 anos, que era sempre incrível. Antes também já ia: fui com os meus pais a Sevilha no ano da Expo, à Galiza muitas vezes, mas na adolescência já tinha mais consciência e liberdade para explorar. Nessa altura, ia a bares, a muitos sítios, e ouvia-se muita música espanhola.
A relação profissional foi crescendo. Estava a tentar lembrar-me, mas acho que foi há uns 8 anos que os A Jigsaw, uma banda de Coimbra, fizeram uma grande tour em Espanha e, na altura, convidaram o programa da manhã da Radio 3 para vir a Portugal fazer uma emissão sobre a música portuguesa. O responsável pelo programa era o Ángel Carmona [atual apresentador do programa da TVE Cachitos de hierro y cromo] e eu estava a trabalhar na Antena 3, tendo feito a ponte com a Radio 3. Foi muito engraçado porque nos demos logo muito bem. Somos da mesma geração, quarentões que gostam de música, com muitas referências desde a música brasileira à anglo-saxónica. Ficámos muito amigos. Então eles fizeram o programa da manhã em direto a partir de Lisboa durante 4 horas, com 4 artistas a tocar ao vivo. Mesmo a informação foi sobre Portugal, porque eles vieram uns dias antes para se inteirarem das notícias de cá, do ambiente político, etecetera.
Isso levou-me depois a fazer um programa de televisão com o Ángel, para o canal Odisseia, inspirado numa série documental feita pelo antigo produtor dos Beatles [George Martin]. Quiseram fazer algo semelhante para a Ibéria, então fizemos uma série de documentários com músicos portugueses e espanhóis – à distância, eu em Portugal e ele em Espanha. Há uma afinidade muita grande entre nós e continuamos hoje a trocar canções e a fomentar esta relação entre os dois países. Como costumamos dizer, estamos mesmo aqui ao lado. É só abrirmos a porta e convidarmos para um café ou uma cerveja.
Entretanto voltaste a colaborar com o Ángel no programa da Radio 3 Hoy empieza todo. Qual foi o teu contributo nas muitas emissões que fizeram juntos?
Foram mesmo muitas! Isto começou como uma brincadeira entre nós e com questões da parte dele, do género “O que está a acontecer em Portugal este ano?”. Então começámos com uma emissão de Ano Novo, a desejar um bom ano com música portuguesa, e ele foi-me convidando para gravar com ele em estúdio quando ia a Madrid. Depois, quando ele estava a remodelar o programa, convidou-me para ser colaborador e DJ residente, para mostrar música portuguesa. Nas primeiras emissões, eu tocava apenas uma música, mas, a certa altura, converteu-se numa espécie de batalha entre nós. Eu passava uma e ele outra, a fazer a ponte entre artistas semelhantes, para as pessoas que não conheciam nada da música feita em Portugal irem ganhando referências. Fizemos isto durante três anos, até ele partir para a RNE [Radio Nacional de España]. Mas temos ideias para futuros projetos, porque isto [de conectar as duas cenas musicais] nunca se desvanece.
Também fizeste o trabalho inverso de promover a música espanhola, entre outras, no teu programa Expresso Europa, entre 2022 e 2023, desta vez na Antena 1. O que te surpreendeu mais nessa viagem?
Uma das coisas mais interessantes que descobri nessa altura foi uma pequena sala de espetáculos chamada La Cueva del Jazz, numa das vezes que fui a Zamora a convite de uma feira como o MIL. É uma pequena sala que programa rock, jazz, blues, e que já acolheu artistas internacionais que nem sequer passam por Portugal. Na altura, lembro-me de ficar banzado ao perceber que estes artistas mais depressa vão a Zamora do que a Lisboa. E os programadores da sala explicaram-me isto de uma maneira muito simples: de Madrid até Zamora, de comboio, são umas duas horas e tal, então é mais fácil de fazer circular.
Depois, ao ouvir a rádio espanhola, vou-me apercebendo do enorme talento que Espanha tem na música eletrónica, no jazz, no folk, com uma grande tradição. Mas o que me surpreendeu mais é o facto de as pessoas estarem muito conectadas com a sua música, isto num país que faz dobragens de tudo e em que as rádios programam sobretudo música nacional. Nós [portugueses] já não temos esse contexto, para o bem e para o mal.
De facto, este programa deu-me a conhecer a riqueza musical que a Europa tem, mas nós estamos aqui num cantinho muito privilegiado. É bonito perceber as trocas que existem: músicos portugueses que vivem em Espanha e vice-versa, bem como músicos de fora que escolhem viver aqui também. E ainda, ao nível musical, o trabalho de artistas como, por exemplo, Baiuca ou Rodrigo Cuevas, que vão buscar muito das tradições de Portugal, da Galiza, das Astúrias e que, depois, as transformam na música eletrónica. É muito interessante.
Atualmente dás voz ao programa da RDP África Samba, Carimbó e Maracatu, sobre a música do Brasil. Que pontes existem entre este “caldeirão de culturas” – uma expressão da sinopse do programa – que é o Brasil e o resto do mundo lusófono e hispanófono?
Aqui voltamos ao início, quando ouvia música brasileira com a minha mãe. O Brasil, para mim, é uma paixão. Tenho a sorte, desde que comecei a fazer rádio na Antena 3, de trabalhar com o Henrique Amaro, que sempre promoveu e programou muita música portuguesa e brasileira – no fundo, a música em português. Lembro-me dessas conexões a acontecerem, por exemplo, entre o Chico Science & Nação Zumbi e os Da Weasel. Hoje em dia, por trabalhar neste meio, conheço e converso com muitos artistas portugueses e brasileiros que também me dão conta dessa ligação.
Mas isso é algo que não acontece ainda com a frequência desejada entre os países que falam português e os que falam castelhano. O Ángel diz-me que é mais fácil para uma banda de Espanha fazer uma turné na Argentina e no México do que vir a Portugal, como ouço artistas portugueses dizerem que o sonho é ir aos Estados Unidos – ainda que seja mais real irem a Espanha. Para mim, há sempre uma dificuldade em compreender isso. Acho que não é uma questão linguística, até porque no Brasil entendem bem o castelhano – às vezes até melhor do que o português de Portugal – como no resto da América Latina entenderão o português. Ainda assim, já existem bons exemplos que cruzam estes territórios: Jorge Drexler, Mayra Andrade, Marisa Monte, e muitos outros.
Voltando ao MIL, referiste naquela sessão que se conhece mais da música espanhola em Portugal do que o contrário. Por que achas que isso acontece?
Há muitos fatores históricos. Ponto número um, porque Espanha programa nas rádios mais de 90% de música espanhola. Eu acompanho muitos festivais de Espanha e, tirando os muito grandes que programam música internacional, os cartazes são 100% de música espanhola. Há todo um lado cultural muito autocentrado. Na rádio espanhola, muito recentemente, ainda havia pessoas que traduziam o nome de artistas estrangeiros: o caso de “Las piedras rolantes” [The Rolling Stones]. E isto, para alguns, ainda é uma discussão.
Mas as coisas têm vindo a melhorar. Lembro-me de uma ocasião, ao passar na Radio 3 uma música dos Quadra, uma banda de Braga que nem é muito conhecida em Portugal, em que eles, no final da manhã, me enviaram um print a mostrar que passaram de 50 para 5000 shazams [identificações da música]. Por isso, há interesse por parte das pessoas. Quem ouve música em Espanha tem interesse em Portugal. Agora, como é que se faz para aumentar essa descoberta? É pouco a pouco, com quem tem vontade de mudar as coisas.
Nem a propósito, no final dessa sessão, foste muito assertivo a sugerir a formação de um coletivo para discutir as questões ibéricas na música. Explica-nos essa proposta.
Estas discussões e conversas são recorrentes, não são de agora. Isto acontece há muitos anos, e há realmente pessoas interessadas em estreitar os laços da Ibéria. O difícil é encontrar quem tenha vontade e tempo para conversar e fazer. Percebe-se que já há coisas a acontecer entre parceiros: por exemplo, o Musicbox [em Lisboa] e a Sala Apolo [em Barcelona] trabalham muito juntos. Mas também se percebe que o que existe é muito feito, em Espanha, para portugueses, e em Portugal para os espanhóis, geralmente por iniciativa das embaixadas.
A meu ver, o que se tem de fazer é mesmo abrir as portas uns aos outros, através das relações pessoais. Eu também faço parte de um coletivo de jornalistas que quer fazer avançar a música europeia para além da hegemonia da música anglo-saxónica. Desta forma, é fácil trocar impressões e, por exemplo, uma jornalista na Grécia pode pedir-me informação sobre um artista português para o promover na playlist de uma revista. O que também me parece fundamental é insistir com as forças políticas e fazer entender que a música é um negócio rentável e que, se juntarmos forças, é benéfico para todos. Tal como existem conglomerados ibéricos noutras indústrias, como o têxtil e as manufaturas, é absolutamente necessário criar grupos destes na música para a Ibéria. A Europa nórdica e a região do Benelux [Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo], por exemplo, estão bastante organizadas, porque perceberam claramente que só tinham a ganhar se trabalhassem em conjunto. É isso que também temos de entender. E precisamos de criar as condições para tal.
O que é ser ibérico para ti?
É falar alto. É estar numa esplanada a beber umas cañas, umas cervejas, enquanto se ri e se falha em algumas palavras que ficaram perdidas na tradução. É ter vontade de estar mais perto e não ter vergonha de dizer “não percebi, podes repetir?”. E, ao mesmo tempo, ter alegria de viver num local que tem muitas coisas muito boas; que hoje vive de uma união, de uma confluência de referências do mundo todo. Nesse aspeto, estamos mesmo num sítio muito privilegiado. Aqui acontecem coisas que juntam, de repente, três ou mais continentes. É muito fácil, em Lisboa, Madrid ou Barcelona, encontrares um grupo de amigos em que um é de Macau, outro é de Cabo Verde, outro é brasileiro e há também um português e um espanhol. É também coexistir em harmonia e, mais do que harmonia, em felicidade. Olhando para dentro, olhando para os outros e abraçando a vida e os amigos.