04/12/2025

O sol do Algarve, a outra margem do Guadiana e eu iberista

Comparte el artículo:

O “meu iberismo” manifestou-se cedo, muito cedo, entre gelados e maresia, durante as longas temporadas que costumava passar no Algarve, desde a infância, com os meus pais e a minha irmã. No fim da década de 80, início da década de 90, partilhávamos a areia quente e o sol tórrido do sul com turistas ingleses e alemães, que se distinguiam bem de nós e com os quais não conseguíamos comunicar, se não fosse através de gestos ou sorrisos – naturalmente curiosos, tímidos, e inseguros…

As férias de verão eram tempo de praia e parque aquático, caril de caranguejo, figos, melão picante e melancia com sal. O pacote incluía também outro clássico, uma visita obrigatória a Ayamonte. Não dizíamos Espanha, dizíamos Ayamonte, do mesmo modo que nos referíamos a Faro ou a Portimão. Para mim, que era uma criança, depois uma adolescente, a outra margem do Guadiana estava tão perto e era tão avassaladoramente misteriosa. Ir a Ayamonte era um desejo forte, uma vontade inexplicável, uma grande excitação.

E bastava atravessar o rio para me sentir, de novo, no Algarve, ou numa espécie de extensão do Algarve e do seu casario branco, tradicionalmente coroado com invejáveis açoteias. E aí, em Ayamonte, a gente local não se distinguia de nós. E o modo como essa gente falava era – e não era – igual, mas era, definitivamente, familiar. O meu pai sentava-se numa esplanada, pedia uma cerveja e davam-lhe uma cerveza. A minha mãe, a minha irmã e eu, percorríamos as ruas e o comércio local. Quando queríamos comprar alguma coisa, todos nós perguntávamos quanto custa? E indicavam-nos o precio em pesetas. Se, entretanto, não criei alguma memória falsa, creio que, pelo menos em algumas lojas, podíamos pagar tranquilamente com escudos. E seguramente, sempre, sempre, conseguíamos comunicar, usando as palavras em vez dos gestos e dos sorrisos.

Foi assim, o “meu iberismo” nasceu entre o Algarve e Ayamonte. E cresceu. Cresceu comigo e com os livros que li – em castelhano, pelo fascínio e pelo desafio – ao longo dos anos. Cresceu comigo de mãos dadas com os meus amigos espanhóis. Os amigos de Tudela de Duero (onde encontrei uma segunda família), de Madrid, das Astúrias, de Salamanca, da Andaluzia (tenho aí uma alma gémea). Cresceu também com a consciência de uma identidade cultural mais ampla, de um sentimento de pertença a um mosaico muito colorido e sempre muito intenso, onde as gentes contemplam a vida e apreciam a boa comida e a música passional, seja pelas vozes magnetizantes do fado ou pelos movimentos hipnotizantes dos corpos que bailam o flamenco – de olhos cerrados, em modo envolvente.

O “meu iberismo” reconheceu-se, igualmente, nas ideias de Miguel de Unamuno e de Eduardo Lourenço. E ainda em textos académicos mais contemporâneos, que nos explicam a todos nós, que nos ajudam a entender quem realmente somos, nós, todos nós, portugueses, galegos, catalães, andaluzes… e nos permitem interpretar todas as nossas manifestações, dos dois lados do Oceano Atlântico, e ainda o que alguns deixámos de nós em África. Para lá das casualidades, das circunstâncias históricas, dos contextos político-ideológicos, essa mescla única, rica e peculiar chamada Ibéria é uma realidade inegável, que existe, persiste e resiste, independentemente de ser formalmente assumida ou não.

A “Jangada de Pedra”, tão genialmente partilhada por José Saramago, apenas precisa (re)aproximar-se da sua essência, dessa unidade diversa e plural que não pode negar a mesma massa, a mesma raíz, o mesmo sentimento, a mesma alma. A “Jangada de Pedra”, a fronteira sul da Europa, necessita apenas (re)descobrir-se, e logo seguir navegando, rumo a um futuro em conjunto. Quisiera… uma Ibéria em que o segundo idioma de cada peça do puzzle fosse o primeiro idioma de uma das outras peças do puzzle, em que as notícias incluíssem todas as regiões e todos os pueblos. Uma Ibéria com mapa geográfico completo, e mapa não geográfico de escala pan-cultural, resultando numa verdadeira soma de todas as partes, de todos os ibéricos, que somos todos nós, na nossa imensa e vibrante singularidade. 

Patrícia Menezes Moreira