EL TRAPEZIO entrevista Lina Cardoso Rodrigues: “Ser ibérica é não ser só ibérica”

O trabalho mais recente da fadista portuguesa, dedicado à poesia de Luís de Camões, inclui um dueto com o asturiano Rodrigo Cuevas

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Lina Cardoso Rodrigues (1984, Hamburgo, Alemanha), conhecida artisticamente pelo nome próprio, é uma apaixonada seguidora do legado revolucionário na música que canta: o fado. Da voz de Amália, que ouve desde os primeiros tempos passados em Aveleda, na região transmontana, ressoa-lhe não só o timbre único, mas a coragem de fazer aquilo que ninguém ousou fazer antes. Levar o fado, canção da alma portuguesa, a (re)descobrir-se e a reinventar-se com outros estilos e influências musicais, que podem perfeitamente cruzar-se com outras línguas também.

Em Fado Camões, quarto álbum da artista dedicado à lírica camoniana e à poesia no fado, Lina recupera a voz do autor d’Os Lusíadas e despe-a à sua essência ibérica, latina, africana, do que se quiser (e conseguir) ouvir. Coincidências: no ano do quinto centenário do nascimento de Camões e quase 60 anos depois de Amália Rodrigues ter feito o mesmo e inaugurar uma nova era no fado.

À beira dos 40 e com o conta-quilómetros musical já avançado – muitos concertos dados pelo mundo ao lado do catalão Raül Refree, com quem gravou o seu disco anterior – continua a apostar na amizade ibérica como matriz, desta vez desafiando o “agitador folclórico” Rodrigo Cuevas a interpretar um dos temas principais do novo álbum. Simplesmente Lina, a sua música está longe de ser sintética e superficial, apresentando contornos e subtilezas que fazem dela uma das mais dignas e despudoradas cantautoras ibéricas da atualidade.

 

Como tem corrido a apresentação deste Fado Camões?

Tem estado a correr muito bem, felizmente. Já temos alguns ecos de lá de fora, também de Portugal. As críticas têm sido muito boas, as reviews também… Portanto estamos muito felizes com o resultado deste projeto.

 

Um trabalho que se debruça precisamente sobre a lírica camoniana, escrita num português castelhanizado, que o linguista Fernando Venâncio considera ser uma preocupação do autor em “iberizar o português”, tornando-o mais percetível internacionalmente. É algo que tinha em mente, de certa forma, quando criou este álbum?

Exatamente. Camões também escreveu em galaico-português, daí eu ter o desejo de juntar as duas línguas – neste caso o português e o castelhano – no mesmo fado, convidando o Rodrigo Cuevas para ser o meu parceiro nesta música em particular [“O que temo e o que desejo”].

Mas eu acho que é uma coisa que já vem do meu disco anterior que fiz com o Raül Refree, produtor catalão. Aí já idealizava muito isso de juntar… não só a Ibéria, mas também outras influências que foram trazidas para o fado desde a sua criação: árabes, do Norte de África, por onde Camões foi passando até chegar à Índia. Acabei então por trazer a Península Ibérica com o Rodrigo Cuevas, das Astúrias, mas também o Justin Adams, britânico e produtor deste disco, que trouxe influências do Norte de África e do Egito, concretamente, onde ele viveu na sua infância.

 

O que procurou especificamente nesta colaboração com o Rodrigo Cuevas?

Eu já conhecia o Rodrigo desde o trabalho com o Raül Refree, que produziu também o primeiro disco dele, o Manual de Cortejo. Posteriormente saiu o meu disco Lina_Raül Refree também com o Raül, portanto é natural que eu tenha esta ligação com o Rodrigo Cuevas. Fui vê-lo quando ele veio a Portugal fazer um concerto no Museu do Oriente e, no final, estivemos juntos. Já tínhamos falado antes por mensagens, mas houve ali uma ótima conexão entre ambos. Também pelo trabalho que ele tem feito pelo folclore, pela música tradicional da sua região e por ser um artista revolucionário que gosta também de juntar várias influências e sonoridades.

 

Voltando agora ao seu início. Passou a infância em Trás-os-Montes, bastante próxima de Espanha. Terá sido aí que começou a sua ligação ao país vizinho.

É verdade. Os meus pais foram emigrantes na Alemanha, viveram durante 11 anos em Hamburgo, mas regressaram a Portugal quando eu tinha cinco meses. Portanto considero-me de Trás-os-Montes, [do distrito de] Bragança, ali bem perto da Galiza. Há até uma aldeia a poucos quilómetros [da terra] dos meus pais que é Rio de Onor e que se divide entre Espanha e Portugal. Por isso, acabo por conseguir também entender algumas palavras galegas que se falam também do lado de cá, naquela zona, e que são muito próximas das minhas raízes.

Mas sobre a minha infância… Tomara muitas crianças terem a infância que eu tive. Poder brincar na rua, tomar banho no rio, chegar a casa à noite… Não sei, é uma experiência completamente diferente da que têm os miúdos de hoje, muito mais virados para a tecnologia e que não têm disponibilidade nem sequer motivação para olhar à volta e fazer parte da natureza. Muitas vezes vou com o meu filho no carro e ele está agarrado ao telemóvel. “Filho, larga o telemóvel, repara nas coisas à tua volta, vê por onde passas”… Eu sou uma felizarda por ter tido desde cedo o contacto com a terra. Os meus pais eram agricultores, também criaram gado e fizeram projetos no Parque Natural de Montesinho, por isso acabo por ter um conhecimento sobre o mundo rural bastante importante.

E, claro, ia a Espanha também, sobretudo comprar azeite e caramelos (risos). Muitas vezes era mais fácil ir lá do que à cidade, a Bragança.

 

Já nessa altura, a banda sonora dos seus dias era Amália Rodrigues, que curiosamente também cantou algum repertório em castelhano. O que mais a fascina na voz e na pessoa?

A emoção que ela me provoca e perceber que ela, ao cantar, sentia aquilo que cantava. A inteligência na escolha dos seus poemas, dos seus poetas, e também o facto de ter sido revolucionária e de não ter medo. Acho que é essa a mensagem que Amália nos passa: não ter medo de arriscar. Ela não teve medo de cantar Camões, as músicas do Alain Oulman… Era alguém muito inteligente e que hoje é uma fonte de inspiração para muitos fadistas e artistas de outros géneros musicais que vão beber dela. É uma inspiração e sempre será.

 

Falando de fadistas, considera-se uma fadista ou uma cantora?

Acho que sou as duas coisas e mais até. Posso ser fadista, posso ser intérprete, posso ser atriz… Felizmente posso ser várias coisas e tive a oportunidade de poder crescer com todas essas artes: o teatro, a música, e até as belas artes.

 

Até porque o seu percurso artístico, na verdade, começou na ópera.

Sim, mas eu gosto muito de cantar fado.

 

Celebrou também Amália no seu disco com Raül Refree. Como se conheceram?

Foi uma ideia da Carmo Cruz, a minha manager, que o contactou. Eu já conhecia o trabalho do Raül e a revolução que fez com a Rosalía e com o flamenco, portanto a Carmo lembrou-se dele precisamente para dar uma nova roupagem ao fado. Ele prontamente disse que sim, que estava interessado em fazer este projeto. Veio ouvir-me ao Clube de Fado, uma casa de fados [em Lisboa] onde já canto há alguns anos, e no dia seguinte estávamos em estúdio, a tocar alguns clássicos da Amália e a tentar perceber se havia uma boa conexão musical. A verdade é que essa ligação foi automática e, a partir daí, começámos a sonhar com esse álbum, Lina_Raül Refree, que ganhou muitos prémios lá fora. Em Portugal também recebemos o Prémio Carlos do Carmo, mas foi mais reconhecido lá fora do que cá, que é uma coisa que acontece muito.

 

A verdade é que andou muito tempo na estrada com ele. O que aprendeu dessa parceria intensa?

Aprendi imenso e dei-me conta… Percebi qual era o meu caminho. O Raül foi um marco importante no meu percurso musical porque apercebi-me de que criar fado não tem de ser com os instrumentos tradicionais. Posso cantar fado só à capela e ninguém me diz que não é fado. Aprendi com ele essa liberdade no canto e também aprendi muito em produção. Acabei por sentir que era importante explorar as sonoridades, os silêncios, os rasgos na voz, a brutalidade dos sons, todas estas texturas que se podem aprofundar. Não só escolher a “música bonitinha” ou músicas avulsas para gravar, mas haver a necessidade de se criar um fio condutor, um conceito, uma sonoridade diferente.

 

Sendo ele catalão, aprendeu também mais sobre a cultura dele?

Não aprendi muito, apesar de ser parecida em muitas coisas com a portuguesa. Consigo perceber o catalão, mas não tive tempo suficiente de o aprender, até porque ele falava sempre comigo em castelhano (risos).

 

Coincidência ou não, o seu próximo concerto será na Catalunha, em Lleida (14 de março). Como a recebe o público espanhol, no geral?

E a maior parte da família do Raül é de Lleida também (risos).

O público espanhol recebe-me muito bem. Fiz muita promoção em Madrid e correu muitíssimo bem. As pessoas recebem-me bem e querem conhecer o meu trabalho. Isso sempre foi muito acolhedor. O facto de também ter desenvolvido esta relação com o Raül faz-me falar melhor o castelhano, portanto acabo por ter um à-vontade maior em comunicar-me e sou sempre muito bem recebida.

 

Derivando para uma questão sempre latente: os direitos das mulheres. Celebrar o 8 de março, Dia da Mulher, faz-lhe sentido?

Faz-me todo o sentido. Cada vez mais temos de celebrar as mulheres das nossas vidas e das vidas dos nossos filhos. É muito importante o papel da mulher na Humanidade e não temos ainda [garantidos] muitos direitos que devíamos ter. É uma luta que parece, muitas vezes, que anda para trás em algumas questões, mas nós somos uma força que tem vindo a construir e a obter o seu território.

O meu papel enquanto mulher nesta dimensão, neste universo onde estou, é poder levar a minha arte e a minha música ao coração das pessoas. Tornar as suas vidas mais felizes ao ouvir o meu canto. Não só o meu, mas o de todas as mulheres deste mundo. Que seja sempre um conforto para alguém que precise.

 

Sim. Mulheres que, para além de cantoras, são muitas vezes também autoras. Nesta sua área profissional, que conquistas se fizeram e o que falta cumprir?

Muitas, mas é preciso continuar a caminhar. Muitas vezes fala-se da primeira mulher a fazer uma música, da primeira mulher a entrar numa universidade, a primeira professora do nosso país… Não se diz o mesmo dos homens. Porque é que isso se destaca? Ainda bem que se destaca, mas será que é justo? Acho que acaba por rebaixar as outras mulheres.

No fado, por exemplo, há muito mais mulheres cantoras do que homens, mas antigamente eram vistas como prostitutas. Hoje já não é assim. Temos um papel muito importante na sociedade como autoras: podemos escrever poemas e fazer músicas. Isso é uma voz poderosa, não só de quem fala, mas de quem canta.

O que falta? Falta tanta coisa… Acho que temos de ser mais reconhecidas pelo nosso trabalho, seja em que área for.

 

Ser ibérica é…

Ser ibérica é não ser só ibérica, é não ter fronteiras. Não fazer distinção entre países. O mundo, se não tivesse fronteiras, era muito melhor. Se não houvesse esta limitação de área, como se não pudéssemos pôr o pé no país vizinho… Acho que [esta perspetiva] é importante tanto na vida pessoal como na música. A música não é geografia.

 

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