Entrevistamos o moçambicano Mia Couto, de nome completo Antônio Emílio Leite Couto, biólogo, jornalista e autor de mais de trinta livros, entre prosa, poesia e ensaios, sua obra é considerada um patrimônio da lusofonia. Recebeu uma série de prêmios literários, entre eles o Camões, em 2013, o mais prestigioso da língua portuguesa, e o Neustadt International Prize em 2014. Em 2024 foi premiado com o Prêmio FIL de Literatura em línguas romances. Atualmente é um dos escritores mais notáveis e produtivos da língua portuguesa e grande embaixador de seu país no mundo.
– A língua portuguesa é central na sua obra, qual é a importância de escrever em português? O que o nosso idioma agrega na sua obra?
Eu venho de um lugar em que a língua portuguesa convive com outras línguas, são as línguas indígenas do Moçambique. O país tem mais de 25 ou 30 línguas, não sabemos bem mapear essas línguas até agora. Elas estão vivas, são dominantes, não se pode dizer exatamente que Moçambique é um país de língua portuguesa, é um país de língua oficial portuguesa.
Grande parte das pessoas falam português, no seu cotidiano, mas a maior parte das pessoas não têm português como sua língua materna, o que é muito bom, porque isso traz para a língua portuguesa uma vitalidade, um mundo de trocas que beneficia muito a vitalidade da língua comum, nossa, partilhada.
Acho que isso aconteceu no Brasil, por exemplo, o Brasil foi importante para nós, porque o português que chegava de Portugal era um português que, para nós que vivíamos essa situação de ruptura com essa ligação colonial, era importante ter outra inspiração, e o Brasil foi uma grande inspiração para todos os escritores africanos.
– Como você vê o grau de aproximação entre os países de língua portuguesa? E como podemos avançar em uma maior aproximação?
Eu acho que há várias dificuldades, uma é o próprio Brasil, o Brasil vive uma geoestratégia diferente, em relação à lusofonia, o Brasil está um pouco afastado. Portugal está mais próximo até porque faz parte da sua ligação histórica com a África e Portugal percebe que isso pode ser um veículo para que a sua presença na própria Europa seja mais forte.
Portugal pode servir de uma porta giratória para que os países africanos também possam reconhecer Portugal como um parceiro importante, o que não acontece tanto com o Brasil. Então, acho que isso é alguma coisa que, não sei se tem que ter solução por aqui, porque é um assunto que depende mais de outras decisões, econômicas, geoestratégicas, militares, etc.
Mas, o que acontece agora é muito formal no domínio dos encontros políticos, etc. Há muito pouca troca direta, entre aqueles que fazem cultura, que fazem arte, etc. Acontece, mas acontece de uma maneira muito episódica, era preciso apostar mais na criação de uma verdadeira família linguística que tem um movimento dentro de si, que começaria logo pela liberdade, podermos não ter visto de entrada para os nossos países, para que nós nos sentamos todosnós como parte integrante de uma família.

– Brasil e a Moçambique compartilham histórias de colonização. Como está a situação das antigas colônias portuguesas na África?
São países que têm quase todos 50 anos. Cada um é tão diferente do outro que não é possível falar de uma maneira geral. O que me parece importante dizer logo à partida é que esses cinco países normalmente são vistos como uma coisa única. Aliás, a África toda é vista como uma coisa única.
Por exemplo, no Prêmio Camões há dois representantes do Brasil, dois do Portugal e dois dos cinco países, como se os cinco países fossem uma coisa, uma entidade única. E eles têm tantas diferenças culturais, linguísticas, políticas, são enormes. É como eu pensar que o Brasil e o Paraguai, ou Brasil e o Chile são uma coisa única. Portanto, não posso responder. Acho que, falando sobre os cinco países, posso só falar do Moçambique, que é o que eu conheço.
– Qual a sua relação com a Espanha? O que você admira ou conhece desse país?
Bom, tenho uma grande admiração por Espanha. Aqui, obviamente, há uma riqueza histórica e cultural e artística que traduziu esse momento em que a Espanha era um dos grandes centros do mundo. E, para mim, em termos pessoais da minha vida concreta, a Espanha estava dentro da minha casa porque meu pai era poeta e tinha uma ligação muito forte com a poesia espanhola. Há vários nomes de poetas espanhóis que ele recitava e tentava recitar com um sotaque meio espanhol. Isso criou logo uma ideia de que há um lugar qualquer que eu não sabia em criança o que era. Simplesmente era um nome. E quando visitei a primeira vez a Espanha, a primeira coisa que acendeu-se na minha cabeça foram as vozes desses poetas.
– Que poetas espanhóis ou de língua espanhola que influenciaram na sua trajetória literária?
Os da minha infância depois acabaram por não ter grande influência, mas tiveram essa coisa da tentação de eu querer também fazer uma coisa dessas como o García Lorca, Miguel Hernández, Rafael Alberti. Esses eram os que habitavam a minha infância. Depois começaram a aparecer os latino-americanos, o Octavio Paz, o Carlos Fuentes, o Juan Rulfo, o García Márquez e do Brasil o Guimarães Rosa, o Drummond de Andrade, o João Cabral de Melo Neto, todos esses foram grandes mestres para mim.
– Uma das suas características é ser polifacético, biólogo de formação, atuou como jornalista muitos anos, como é trabalhar assim com tantas frentes?
Eu só sei viver assim, porque me parece que a única coisa que me apetece enquanto vivo é tocara vida inteira e saber que para fazer isso eu preciso ter várias janelas ao mesmo tempo abertas e portanto elas não conflitam. Há pessoas que perguntam como é que você consegue conciliar. Eu não vejo sequer sentido na pergunta porque a biologia é também uma maneira de contar uma história que é a história da vida inteira. Então vejo que isso tudo se complementa.
– Essa caraterística, também contribuiu na sua trajetória literária?
Absolutamente, sim. Porque eu percebo que aquilo que a gente pensa como um cenário, eu estou olhando para si, atrás de si estão árvores, um pequeno jardim, não é um cenário para mim, todas essas árvores são entidades vivas, tem uma voz, tem uma alma, estão me dizendo qualquer coisa e eu quero conhecê-las, quero falar com elas.
– Podemos dizer que é daí que surge o seu realismo mágico?
Mas a realidade é sempre mágica, esse é o nome que deram a essa corrente literária, não parece justo porque não existe essa separação entre realidade e magia, a realidade é sempre mágica. Nem sequer sabemos onde começa e acaba a realidade, se lhe perguntar como é que você define a realidade, é difícil responder.
– Gostaria que você citasse duas qualidades imprescindíveis em um bom escritor, pensando principalmente nos jovens escritores, ou pessoas que querem se dedicar a esse ofício?
A primeira é ter um poder de escuta, a gente escreve porque escuta e depois é perceber que não conhecemos o outro se não soubermos as histórias que ele tem. Você tem histórias e só existe como um ser único porque tem histórias, tem vivências que só você pode contar.
O convite é perceber que não conhecemos as pessoas sabendo só o que está na aparência, é preciso que essas pessoas se revelem nas suas próprias histórias, nos seus medos, naquilo que é mais íntimo.
– Para finalizar, nós estamos aqui na Casa de América, onde se fomenta o uso das línguas da Iberoamérica. Qual a importância da intercompreensão entre as línguas iberoamericanas?
Eu me sinto muito bem num país em que eu posso falar na minha língua e a outra pessoa perceber-me e falar na sua língua e eu perceber. É muito bonito porque eu tenho que me interrogar sempre sobre a palavra que eu vou escolher porque se eu disser engraçada, por exemplo, eu vou criar um mal-entendido no outro.
Há palavras que eu tenho que perceber, que eu tenho que revisitar a minha própria língua como quem revisita uma coisa tão familiar que é como se você visitasse a sua própria casa pela primeira vez. Tenho que estar sempre fazendo isso e perguntando se será que a palavra calmo, por exemplo, tem equivalente? E vou interrogar a própria palavra calmo, como é que eu vou dizer de outra maneira? Portanto, há um jogo que me parece que é bastante sedutor.


