Olhar a liberdade: O 25 de Abril desde a minha encosta

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Setembro de 1973: gravei na minha memória a emoção que senti quando estava na fila para matricular-me no curso, de Filosofia e Literatura, com a revista “Triunfo”, que eu tinha debaixo do braço, que publicava uma capa em tons de preto onde lamentava o triunfo do golpe contra Allende no Chile. Emoção profunda, no limiar da vida universitária, para tantos jovens, como eu era, que tinham esperança num socialismo democrático. Allende incorporou o intelectual ético que se colocou à frente de um povo indefeso para quebrar o Golias do poder. O destino trágico fora inexoravelmente cumprido. Comecei assim na idade adulta.

Janeiro de 1974: Pelo ditado de um ministro lunático que desejava combinar o ano civil com o ano académico, o nosso primeiro ano de universidade começou no auge do inverno e durou apenas uns seis estonteantes meses. Durante ele vimos a Polícia Armada Franquista, que nos despejou após cada assembleia estudantil, entrar na Faculdade, um magnífico palácio de ex-nobres. Os fluidos juvenis ferviam diante da injustiça que tínhamos diante das nossas portas. Lemos muito, com o prazer dos romances, procurando direção no espaçamento entre linhas. Era de ouro de ouro de um ensaio definitivamente perdida.

25 de Abril de 1974: O crepitar das ondas de rádios estrangeiras trouxe algo de novo. Sempre com o volume baixo, ouvimos que algo de extraordinário havia acontecido no país vizinho. As ondas oscilantes, às vezes inaudíveis, informaram que no “Portugal distante”, como disse Gaziel, havia acontecido um golpe militar, seguido de revolução nas ruas, que proclamava o fim do Estado Novo. As revistas da oposição trouxeram imagens incomuns de soldados com cravos nas armas confraternizando com pessoas com rostos transcendidos de felicidade. A maravilhosa canção “Grândola Vila Morena” fez nossos corações encolherem. Decidimos amar Portugal para sempre.

Julho de 1974: Naquele estranho verão, que por razões familiares não pude viajar como limpador de janelas para Paris, com os meus amigos, fui para um campo de trabalho em Ciudad Rodrigo. Era então uma vila absolutamente sonolenta, onde você podia ouvir os seus passos guinchando pelas ruas desertas. Tomámos banho no rio Agueda, fingimos restaurar uma porta medieval, chamada Colada, e comemos farinato, uma salsicha local típica dos pobres. Sabendo que a liberdade estava próxima, a alguns quilómetros de distância, na fronteira de Fuentes de Oñoro, pedi a amigos que tinham um daqueles minúsculos Seat 600s para que fossem comigo ver Portugal, mesmo que fosse de longe. Não tinha passaporte e não podia viajar, pois quando tínhamos apenas dezoito anos precisávamos de autorização dos pais. Então o milagre aconteceu: fascinado pela visão do lado português, enquanto os meus amigos prometeram esperar a minha volta, decidi atravessar a fronteira. Imprudência que ainda me domina, porque a polícia tinha dedo leve no gatilho das pistolas. Escondido, agachado entre uma longa fila de veículos de imigrantes portugueses que passavam o verão novamente em casa, consegui chegar ao lado português. Fui levado abruptamente levado a uma cabine improvisada pelo Partido Socialista Português, que acolheu os retornados ao país da liberdade recém-conquistada. Por trás das cortinas fechadas, eles avisaram-me que do outro lado estariam certamente a vigiar-me. Estes socialistas, suponho, sob o mesmo tumulto que o meu, encheram-me de panfletos políticos e, acima de tudo, deram-me uma bandeira de Portugal. Guardei tudo de forma imprudente na minha cueca. Voltei da mesma maneira.

Primavera de 1975: Data indeterminada. Tiro a bandeira portuguesa que está exibida desde que voltei de Ciudad Rodrigo, na cabeceira da minha cama, na modesta casa de veraneio da família, a cinquenta metros de onde García Lorca foi executada em Granada. Este foi o primeiro aniversário da revolução dos cravos. Dois amigos, e ainda camaradas, decidiram exibir a faixa verde e vermelha num balcão da Faculdade naquela data. Nós fizemos o mesmo mas a polícia retirou-a furiosamente.

Setembro de 1975: Franco executou os seus últimos reféns, jovens sem barba. Também somos presos pelo protesto que estávamos a preparar por causa desse ultraje. Durante os interrogatórios, fiquei surpreso com a insistência de um dos membros da polícia política. Quando estávamos sozinhos, pensávamos no destino que reservamos para eles quando obtivéssemos sucesso. Surpreso, encontrei aqui um eco do destino das “pides” portuguesas (polícia de Salazar). Acima de tudo, fiquei impressionado com a insistente violência do interrogatório, olhando obsessivamente para quem havia pendurado uma bandeira portuguesa meses antes na Faculdade.

Evidentemente, Portugal e o seu 25 de Abril significavam muito para todos nós. O destino do sul da Europa tinha mudado rapidamente e comprometia Espanha, que pouco mais de um ano e meio depois se veria envolta no turbilhão da transição. Para mim ficou a recordação de ter intuído naquele cruzamento suicida da linha de fronteira o que era liberdade. Desde então, e para sempre, a 25 de Abril canto a “Grândola Vila Morena” com um entusiasmo juvenil.

 

José Antonio González Alcantud é catedrático de antropologia social da Universidade de Granada e académico correspondiente da Real Academia de Ciencias Morales y Políticas de Espanha. Premio Giuseppe Cocchiara 2019 aos estudos antropológicos.

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