O português nas redes sociais – dores e delícias

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De propostas inovadoras a conteúdos oportunistas, de abordagens lúcidas a “professores” execráveis: existe de tudo na internet quando o assunto é língua portuguesa. Aqui, fazemos uma breve análise do que vem acontecendo nas redes sociais com o português, idioma que é um dos mais usados mundialmente na mídia digital.

É sabido que o português é um dos idiomas mais usados na Internet e nas redes sociais. De acordo com vários rankings – entre eles o da empresa W3 Techs, especializada em estudos web, e o da ONG Observatório da Diversidade Linguística e Cultural na Internet –, o pódio costuma ficar em mãos do inglês, do mandarim e do espanhol, mas o português vem logo em seguida, dividindo espaço com línguas como o francês, o alemão, o russo, o árabe, o hindi, o japonês e o malaio. Nas plataformas Facebook e Youtube, dependendo dos critérios de análise, o português chega a ostentar o terceiro lugar entre os idiomas mais utilizados.

Sem dúvida, dados tão expressivos são positivos para a língua portuguesa. Demonstram toda a sua força e poder de penetração no meio digital, que abarca majoritariamente a gerações mais jovens, ou seja, o futuro da língua. No entanto, para uma análise mais ajustada à realidade, é prudente visualizar com lupa alguns detalhes desse panorama geral.

Gostaria de dividir o assunto em duas camadas: uma delas, a do simples uso do português como veículo de comunicação dos internautas; outra, a profusão cada vez maior de “professores” de português que geram conteúdo para a web. 

Os usuários

Os usuários lusofalantes das redes sociais promovem uma verdadeira festa do idioma. Sei que os mais puristas são contra, mas eu, particularmente, acho saudável e inclusive necessária a dinâmica criativa e transformadora da língua portuguesa operada em chats, posts e memes, a começar pelas abreviações, que transformam “também” em “tb”, “você” em “vc”, “abraços” em “abs”, “beijo” em “bj” e “saudades” em “sdds”, entre outros tantos possíveis exemplos. Assim, poderíamos ter um pequeno diálogo em perfeito português, adequado ao ambiente das redes sociais, que dissesse simplesmente:

sdds de vc

sdds de vc tb. bj

Outro caso são o das expressões que passam do falar popular às redes sociais, ganhando uma dimensão ampla e permeável a toda a lusofonia. Um exemplo curioso é a expressão “sextou”. A maleabilidade da língua é tamanha que utiliza o nome de um dia da semana (sexta-feira) para criar um verbo (que seria o verbo “sextar”). Nesse processo há uma interessante transmutação semântica: na sexta-feira as pessoas costumam estar felizes, pois vislumbram a liberação de seus compromissos de trabalho ou estudo. Por isso, quando chega a sexta, as pessoas “sextam”. Esse novo verbo traduziria o sentimento de liberdade específico desse momento da semana. É uma especialização de sentido que considero bastante sofisticada. A partir disso, é comum vermos nas redes sociais, por exemplo, um usuário publicar uma foto em um bar com os amigos acompanhada da legenda “sextou!”.

Continuando ainda no nível dos usuários lusofalantes da Internet, é interessante também constatar a grande profusão dos chamados “memes” feitos a partir de brincadeiras com o idioma. À primeira vista, podem parecer um tanto bobos, mas eu acho que demonstram o gosto popular por brincar com o idioma pelo puro prazer de se fazer jogos de linguagem, o que significa que as novas gerações se sentem à vontade com a língua e vêm operando aceleradas mudanças em sua feição. Tem que ser assim. O idioma tem que se mover. Afinal de contas, como diz o ditado, quem fica parado é poste. A língua é do povo que a utiliza, e não somente dos gramáticos, dos fazedores de manuais e dos que adoram ditar regras de etiqueta para o português. Vejamos o exemplo abaixo:

Professores e “professores”

Vamos a nossa segunda camada de análise, a dos produtores de conteúdo para Internet que pretendem ensinar a língua portuguesa. Há que se ter muito cuidado, para que não caiamos em generalizações injustas, até porque eu não coletei uma amostra exaustiva desse tipo de conteúdo nas redes. Ou seja, o que digo a seguir não tem, é claro, valor acadêmico, já que não adota metodologia científica. De todo modo, como profissional da língua que sou, estou sempre atento à temática do idioma nas redes e conheço boa quantidade de conteúdos relacionados ao português. Outro cuidado que terei é o de não citar nomes.

Em primeiro lugar: é claro que existe gente muito boa e muito séria ensinando português na Internet. São professores com boa formação e experiência, que, inclusive, muitas vezes deixam um link para a consulta de seus currículos. Mas na verdade nem é preciso consultar o currículo, pois é notória a diferença entre esses professores lúcidos e bem preparados e os “professores” oportunistas que objetivam angariar seguidores a qualquer preço. Pra começar: os bons professores geralmente falam em um tom de voz tranquilo e agradável e, o mais importante, sempre vão ponderando seus comentários com observações sensatas sobre outros modos de uso segundo recortes geográficos, sociais ou geracionais. Quando vejo algum “professor” gritando, exaltado e espalhafatoso, sei de antemão que o que ele busca realmente não é ensinar português, mas sim ganhar likes por meio do sensacionalismo.

Não tenho nada contra as atividades de instagramer, youtuber ou tiktoker. Acho que, pouco a pouco, vamos deixando de lado o preconceito e entendendo que a produção de conteúdo para essas redes pode, sim, ser considerada uma profissão. Mas, é claro, o exercício dessas atividades tem que ser responsável, ainda mais quando pensamos que seus públicos podem ser gigantescos e estão formados em grande parte por jovens e adolescentes. Se a pessoa não tem formação suficiente em língua portuguesa, ela não pode (ou pelo menos não poderia) produzir conteúdo sobre esse assunto!

Infelizmente, no entanto, já me cansei de ver dezenas de mentecaptos por aí divulgando conteúdos de baixíssimo nível, representando um desserviço a todos os professores sérios que levam anos trabalhando pelo idioma. Considerando o alcance que muitos deles têm em termos de números de seguidores e visualizações, diria que é um desserviço a toda a sociedade. É deveras nocivo que esses inconsequentes continuem espalhando suas nescidades pela rede, sem nenhum controle ou consequência.

Não quero dar nome aos bois, até porque são muitos, mas, de maneira geral, todos eles incorrem nos mesmos deploráveis equívocos. É normal, por exemplo, detectar nesses “professores” uma anomalia do pensamento que os leva a acreditar que a maneira com que eles se expressam é a correta e que todas as outras, diferentes da sua, são incorretas. Há também os casos em que o autodenominado “professor” ri dos outros por se expressarem de forma contrária aos mandamentos da gramática, sem se dar conta de que ele também – o autodenominado “professor” – os desrespeita constantemente. Aliás, é preciso fazer um adendo: não existe A gramática. O que existem são vários gramáticos que publicam seus livros de gramática, e inclusive entre eles há desacordos. Ou seja, não sei quem ainda hoje pode pensar que o idioma é algo fixo e engessado refletido em um livro de gramática normativa.

Como se não bastasse o conteúdo ruim relacionado ao português, muitos desses boçais ainda trazem em seus exemplos e comentários mensagens explicitamente machistas, classistas e racistas em relação a determinadas zonas da lusofonia. É de chorar de tristeza e também de indignação pensar que esse tipo de conteúdo está atingindo e influenciando tantos e tantos jovens mundo afora.

Temos os casos também – que eu até posso respeitar – dos replicadores de regras que se posicionam especificamente como preparadores de alunos para concursos públicos. Embora não concorde com a simples reprodução de normas sem contexto, compreendo que esses professores podem prestar um bom serviço a alunos determinados que irão concursar e necessitam memorizar as regras da variante do português considerada de prestígio.

O sábio José Saramago afirmou certa feita que “Não há uma língua portuguesa; há línguas em português; a língua portuguesa é um corpo espalhado pelo mundo”. Concordo plenamente, como não poderia deixar de ser. O que acontece, por desgraça, é que muitos têm preguiça de pensar. É muito mais fácil colocar a língua dentro de uma caixa e sair por aí repetindo regras. É mais cômodo não questionar e não analisar. Afinal de contas, considerar contextos sociais, educativos, linguísticos, históricos e tantos outros requer muito estudo e leitura, e tudo isso dá mesmo muita preguiça. Se caminhos mais curtos e mais medíocres bastam para arrebanhar grande quantidade de likes, pra quê se esforçar tanto, não é mesmo?

 

Sérgio Massucci Calderaro

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