«A sua música traz a alegria de estar no ponto preciso para virar uma situação. Isso faz com que seja sempre actual»

'Balada do Desterro' é uma banda desenhada [cómic] que conta a vida e a obra de Zeca Afonso, o criador de 'Grândola, Vila Morena'

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Teresa Moure e Maria João Worm são as responsáveis pela banda desenhada Balada do Desterro. Zeca Afonso é um dos principais nomes da música portuguesa do século XX muito devido a ter dado a sua voz a Grândola, Vila Morena. Este livro assinala os 94 anos do nascimento do cantautor que se notabilizou pelos seus temas de cariz politico e social.

Na Balada do Desterro não pode faltar a censura do Estado Novo, a passagem de Zeca Afonso pela prisão de Caxias ou a revolução de Abril. Nesta banda desenhada são descritos alguns episódios da vida de Zeca Afonso e personagens que o acompanharam e dever ser vistas a luz da época.  A escolha pelo formato de banda desenhada para contar esta história deveu-se por ser um formato artístico  próprio. «Quando o Ramon Pinheiro Almuinha apresentou-me a ideia, experimentei alguma intranquilidade, mas, se houver alguma ousadia em visitar esse formato, o mérito é completamente seu. Afinal, fiquei muito satisfeita do processo e do resultado. Para mim, como escritora, foi uma grande oportunidade de me expressar num registo diferente, que me formulava desafios inéditos e, sobretudo, de partilhar criação com uma ilustradora tão potente como a Maria João».

Sobre a importância das mulheres na vida de Zeca Afonso, a autora explica que «a pergunta só poderá ser respondida com a leitura da obra. Deixaremos, no entanto, algumas dicas. Ele teve duas mulheres e duas filhas. Como disse antes, ao se separar da Maria Amália, encomenda os filhos à mãe, o que indica uma estreita confiança com ela. Além do mais, na infância ele próprio fora educado em momentos diversos por duas tias. Parece, portanto, que existem personagens femininas de grande importância para decidir os capítulos da sua vida. Se formos para a música, canções como Teresa Torga indicam uma peculiar sensibilidade do Zeca com a situação das mulheres».

As ilustrações que fazem parte desta BD são apresentadas como um autêntico teatro de sombras. A responsável por estas ilustrações, Maria João Worm, teve liberdade para criar e experimentar novas técnicas, como é o caso dos recortes atravessados por luz. «Estas imagens pareceram-me ajustadas para recriar o lugar da memória, do passado, e ao mesmo tempo acentuar o facto de, dentro do livro, estarmos perante a presença de personagens habitando espaços cénicos. O facto de partir do texto da Teresa, possibilitou-me concentrar-me no desenho, criado pela luz, como lugar de encontro com as suas palavras. Apesar da síntese gráfica, houve bastante trabalho de pesquisa para que os ambientes evocados pudessem ser justamente credíveis. Também foi um ponto essencial conseguir edificar a estrutura gráfica, e fazer com que os diferentes registos formassem um corpo coeso».

A ligação a Galiza não foi esquecida. «Segundo ele próprio declarou em diferentes entrevistas, sempre se sentiu muito querido na nossa terra, que visitava com frequência, e hoje a memória do Zeca está tão viva na Galiza quanto em Portugal. A Balada do Desterro inclui um dos episódios mais ilustrativos para valorizar a profundidade desse relacionamento. Em Agosto de 1985 vinte mil pessoas reúnem-se em Vigo para um grande concerto em homenagem ao Zeca, já estava doente. Quando uns meses antes alguns amigos, como é o  Xico de Carinho e a Begónia Moa, lhe comunicam esse tributo, ele aceita ser cabeça-de-cartaz de um evento que entende como organizado em defesa da língua e das reivindicações nacionais. No dia do concerto, para além da música, participaram poetas e líderes políticos que lêem comunicados solidários, mas o Zeca, que só pode participar telefonicamente, fala dos direitos políticos e culturais da Galiza e é respondido com seis minutos de palmas», o arrecadado serviu para pagar as despesas médicas que estava a ter.

«Em 1972 o Zeca deu um concerto em Compostela onde cantou, dizem que por vez primeira em público, o Grândola. Embora essa suposta primícia seja bastante controvertida, o evento faz parte da memória colectiva galega, segundo demonstra a correspondente placa no Auditório de Galiza. Na primavera do 2021, o nosso editor galego, Ramon Pinheiro Almuinha (aCentral Folque), decidiu celebrar esse cinquentenário com alguma publicação, que ele já imaginava no formato da banda desenhada, e convidou-me a escrever o texto», contou Teresa Moure sobre como surgiu este livro.

«Sabia do Zeca, é claro. Da sua música ou do seu compromisso político; também da sua vinculação artística e pessoal com espaços lusófonos não portugueses, como a Galiza ou Angola e Moçambique. Porém, a pesquisar sobre as suas estadias na Galiza, surgiram um par de pessoas reais que mantiveram grande amizade com ele: o músico Xico de Carinho e a jornalista Begónia Moa. Através destas duas vozes consegui aceder a qualquer coisa que não estava, que não podia estar, nos documentos históricos ou nas entrevistas: detalhes do seu carácter, formas de falar, frases realmente ditas que enriquecem o texto», disse Moure.

«Para as pessoas galegas – das espanholas não sei tanto assim –, o Zeca transmite o respeito para o minúsculo, para as personagens fora de foco, para a desigualdade em termos de classe, mas também de raça ou de ideologia. A sua música, enraizada na tradição, mas impregnada de ritmos não europeus, traz a alegria de estar no ponto preciso para virar uma situação. Isso faz com que seja sempre actual», defende.

«Num repertório tão amplo como o do Zeca é impossível ficar com uma canção em particular. Mas vou fazer minhas as palavras da Begónia Moa, que numa dada altura da Balada do Desterro tem de responder a esta pergunta e escolhe Tinha uma sala mal iluminada. Quando o Zeca canta “As vezes uma dúvida rondava: valia ou não a pena o que fazias?” reproduz perfeitamente o sentir de quem procurava uma mudança política, mas também o que experimentamos hoje em tantos corpúsculos alternativos que trabalham contra o colapso ecológico, contra o capitalismo selvagem ou contra o consumismo tornado numa maneira de viver. E o melhor é que deixa sempre um espaço para a esperança quando diz: “Se alguém caía um outro alevantava o tronco que tombava e renascias”».

Teresa é docente universitária e Maria João Worm é artista plástica. «O universo da BD é hoje bastante amplo e plural. Nesse sentido, acho que a Balada do Desterro é um livro de autor. Neste caso de autoras. Não se trata de uma biografia nem de um documento histórico ou de material pedagógico. Na ilustração, a Maria João usa diferentes variantes de sombras chinesas; não é o tipo de desenho habitual nos produtos de massas. No texto, eu utilizo técnicas habituais na minha narrativa como a mistura de géneros –diálogo, flashbacks, entrevistas a personagens reais ou inventadas, cartas reais do próprio Zeca. O resultado e um produto com múltiplas texturas, mais poético do que histórico, ainda que tentamos ser absolutamente rigorosas com a nossa documentação. Acho que pode dirigir-se a pessoas de todas as idades, quer conheçam bem o Zeca, quer não o conheçam em absoluto», para a autora este é um livro dedicado a todas as idades.

A Balada do Desterro tem o selo das editoras Tradisom e da galega aCentral Folque.

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