EL TRAPEZIO entrevista O Eixo do Jazz: «O nosso público está muito arredado dos grandes centros, portanto temos de ir buscá-lo»

A associação luso-galaica para a promoção do jazz participou na última edição do encontro MUMI – Músicas no Minho, que decorreu entre 29 de setembro e o primeiro dia deste mês na eurocidade Tui-Valença

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De uma entrevista casual para um documentário surgiu a ideia de um projeto que unisse os dois lados do rio Minho através do jazz. A entrevistadora, Cristina Marvão, é portuguesa, mulher do Norte, e o entrevistado, Diego Alonso, um galego que resolveu estudar no Porto. Juntos criaram O Eixo do Jazz em 2017, uma associação que desenvolve vários projetos para promover este género musical na Galiza e em Portugal, sem esquecer a formação e o apoio aos músicos.

Depois da participação de ambos num faladoiro (debate) sobre projetos transfronteiriços, no âmbito do encontro MUMI – Músicas no Minho, o EL TRAPEZIO foi conhecê-los e descobrir o que os une e o que mantém este projeto.

 

Como surgiu O Eixo do Jazz?

DIEGO ALONSO – No outro dia, no Faladoiro, disse que este projeto foi uma feliz coincidência, e é verdade. Eu sou de Vigo, estudei na ESMAE, no Porto, e lá tive acesso a eventos como o Guimarães Jazz, onde conheci a Cristina. Ela andava por lá a fazer um documentário, pediu para me entrevistar e, ao que parece, eu disse-lhe algo como: “Eu sou galego e não tinha ideia de que existiam tão bons músicos e sítios para tocar jazz em Portugal”. Refletia sobre o porquê de, na Galiza, não sabermos da existência disto.

Uns meses mais tarde, ela ligou-me por causa dessa frase e disse-me que queria contar comigo para criar uma associação que conectasse os músicos e intérpretes de jazz da Galiza e de Portugal, mas que também criasse um circuito nesta região. E assim foi. Fomos começando a criar o circuito, que permite aos músicos não só tocar de um lado e do outro do Minho, mas também apresentar os seus temas originais para lá do jazz tradicional.

E um outro aspeto muito importante do projeto é que permite aos músicos fazer só música e não ter de se preocupar com tudo o que envolve esta atividade: redes sociais, agenciamento, marcar concertos… Quando temos de fazer tudo isso, parece que tocar – que é a essência da música – é o menos importante.

CRISTINA MARVÃO – É engraçado estar a acontecer esta entrevista e outras coisas onde vamos participando porque comemoramos cinco anos de existência. Tudo isto que o Diego contou aconteceu no verão de 2017, mas hoje anda tudo mais ou menos na mesma. Eu já trabalho com o jazz desde os anos ’80 e, desde essa altura, os músicos continuam a ter de saber fazer tudo para além de tocar.

Ajudá-los nessa parte é também um objetivo nosso que ainda não conseguimos realizar na totalidade. Por burocracia e porque ainda não temos essa capacidade. Já fizemos workshops sobre finanças, mas a realidade de aqui é diferente da de Espanha, o que torna tudo mais difícil. Por isso, temos estado a ganhar força através da música para conseguirmos arranjar mais gente para trabalhar connosco nesta área.

 

Que têm feito, então, nestes cinco anos?

DIEGO – Agora mesmo, o nosso foco é trabalhar o Jazz na Aldeia. Residências artísticas em lugares onde normalmente não há contacto com o jazz. Parece que o jazz está sempre mais associado às cidades, mas a Galiza e Portugal têm muitas aldeias onde faltam eventos culturais que façam chegar às pessoas este estilo musical.

Então, neste projeto, convidamos sempre um músico, português ou galego – ultimamente até dizemos que pode convidar mais um ou dois músicos – e faz-se uma residência artística durante uma semana, onde os residentes não pagam ou pagam mesmo muito pouco para lá estar. Trabalha-se um repertório, faz-se um concerto final e, daí, geralmente contactamos o artista convidado para tocar com o nosso ensemble.

Estamos agora também a gravar o nosso primeiro disco, um registo que possa manter no tempo o repertório que tocamos. Isso é importante para que o Eixo do Jazz Ensemble possa ter mais concertos.

CRISTINA – Temos também outro projeto importante, o Jazz na Caixa, que nasceu praticamente ao mesmo tempo do que o Eixo, por outra feliz coincidência. A nossa sede está em [Vila Nova de] Famalicão, primeiro, porque era um centro onde não havia jazz e, segundo, porque é um território bastante central no eixo galego-português que queríamos criar. Mas lá também havia outra pessoa interessada em jazz, que nos foi apresentada pela Câmara Municipal, e que queria fazer uma coisa chamada Jazz na Caixa: uma série de espetáculos de jazz em cima de um palco. Essa pessoa é o Tiago Machado, guitarrista, que curiosamente também estudou em Vigo.

Obviamente que entre nós houve logo uma faísca porque isso tinha tudo que ver com o que queríamos fazer. Fizemos um Jazz na Caixa “zero” em 2017, quase sem recursos, mas contámos logo com a presença do João Mortágua e do Iago Fernández. Em 2018, já com o apoio da Câmara, fizemos três fins de semana de Jazz na Caixa, com o cuidado de convidarmos galegos e portugueses do Sul. Isto porque somos um eixo e, portanto, queremos estendê-lo ao máximo.

Entretanto reduzimos a duração do Jazz na Caixa para apenas três dias, embora, no ano passado, tenhamos feito três fins de semana separados. Porque recebemos apoios relativos à covid e decidimos também apoiar os músicos nos seus projetos. Para além disso, vamos criando alguns desafios interessantes em cada edição. Convidámos, por exemplo, a Rita Redshoes a tocar em duo com o Bruno Santos – que é o marido dela – e foi um concerto lindíssimo.

Eu, que não sou música, posso dizer que me sinto muito orgulhosa de ver músicos que começaram connosco e que agora já estão com carreiras lançadas. No início era uma “cachopada”, mas continua a ser assim. Este ano, em Monfortinho – também na fronteira – tivemos a tocar connosco uma jovem de 15 anos, que me foi entregue pelo pai, até jovens de 30. [risos]

DIEGO – Obrigado por isso, Cristina. [risos]

 

Porquê defender o jazz na Galiza e em Portugal? Que têm de especial estas comunidades?

DIEGO – O jazz existe há muito tempo nos dois sítios. Na Galiza, sobretudo nos últimos 20 anos, têm surgido muitos eventos e bandas de jazz (como os Clunia, por exemplo). Mas foi a partir da criação do Seminário Permanente de Jazz de Pontevedra que passou a haver uma efervescência de músicos de jazz, e até alguns dos mais antigos que criaram o seminário são agora dos maiores músicos de jazz da Península. Isto é uma incubadora para novas gerações de músicos, mas a verdade é que continua a não haver na Galiza muitos espaços para que todos possam trabalhar.

Do lado português, pelo que sei, há mais oportunidades e mais sítios onde se pode tocar jazz. Obviamente que também é um território maior, mas é possível mover-se dentro de Portugal e há certas iniciativas culturais que são muito bem feitas.

O que falha, sim, é a conexão entre os dois territórios. Os músicos mais estabelecidos, claro, sempre tiveram mais contacto entre si por uma questão profissional: ouvem as músicas uns dos outros, vão-se conhecendo em jams e outros eventos… e isto cria um circuito limitado. Quem está de fora pensa que é difícil conhecer esta gente, que são pessoas menos acessíveis, o que não é verdade de uma forma geral.

O que fazemos, então, é fomentar esta interconexão. Com o Jazz na Aldeia, por exemplo, um músico menos experiente pode conhecer músicos mais experientes, e cria-se ali um acesso que antes seria menos provável. Ou até acontece que os músicos formadores conhecem músicos mais “pequenos”, mas muito talentosos, e, se calhar, esses artistas começam a despertar para a nova geração. Mas isto é algo que transcende o próprio Eixo. Funcionamos como um interconector, mas depois criam-se muitas outras ligações fora disto.

CRISTINA – Da minha parte, posso dizer que esta ligação entre Portugal e a Galiza é óbvia. Temos praticamente uma língua comum e bastantes outras afinidades. Os músicos galegos costumam vir estudar para o Porto, os portugueses vão para a Galiza e, portanto, há uma facilidade que se cria por esta linguagem comum, seja oral ou musical.

 

O que falta então para que esta ligação seja ainda mais forte?

DIEGO – Isto que a Cristina disse é muito bom, mas é também um claro exemplo de que há mais apoio de um lado do que do outro ao setor cultural. Quero dizer, na Galiza [conseguir] isto é muito difícil, às vezes, mas é preciso lutar para que seja muito melhor.

CRISTINA – Em Portugal também não temos uma coisa que há mais na Galiza: o público nos concertos. Eu tenho visto concertos na Galiza que têm sempre mais público do que em Portugal, independentemente de o músico ser de topo ou não. Porque as pessoas vão para a rua, vão ver e ouvir estes concertos, e automaticamente têm mais conhecimento da matéria. Em Portugal, isto é um desafio. É um problema convencer os portugueses a sair de casa e a pagar para assistir a qualquer evento cultural e, particularmente, a concertos de jazz. Sem ser, talvez, no Porto, onde já assisti a um concerto em que não conhecia praticamente ninguém. Porque normalmente são sempre as mesmas caras.

Mas também já tivemos, neste evento que fizemos em Monfortinho, mais de 100 pessoas a assistir, numa aldeia que tem 300 pessoas. Muitas delas nunca tinham ouvido jazz e gostaram. E realmente foram capazes de combater o preconceito sobre o jazz que ainda existe e que, provavelmente, ficou do “tempo da outra senhora”. A verdade é que o nosso público está muito arredado dos grandes centros, portanto temos de ir lá buscá-lo.

 

Para terminar, como é que praticam esta ligação ibérica nas vossas vidas?

DIEGO – No meu caso, é através da língua. Gosto muito do português, de certas expressões. Em Vigo, sou sempre aquele que faz as piadas em português. Portanto, para mim, a língua é algo que me une muito a Portugal, que nos une a todos.

Mas acho que a própria associação – e eu, incluindo-me nela – também promove esse iberismo, mesmo que não seja algo muito assumido. A música que fazemos juntos cria isso por si só, nós só temos de ajudar a que isso aconteça. O facto de poder trabalhar nos dois países é maravilhoso e, às vezes, até é mais barato para mim viajar desde Vigo ao Porto do que de Vigo à Corunha. Acho que isso é bom e é algo que se deve fomentar mais.

A questão da alta velocidade ferroviária que agora se discute, por exemplo, também é iberismo. É muito importante que se crie este eixo entre a Galiza e o Norte de Portugal. Mas não só com o Norte e, sim, com toda esta faixa atlântica e não só.

CRISTINA – Outra coisa que nos liga também muito é a comida [risos]. Como muitos outros portugueses do Norte, eu já vou à Galiza desde os anos ’70, mas descobri uma Galiza diferente quando comecei a trabalhar com O Eixo do Jazz. Passei a procurar mais, a descobrir mais sobre a Galiza, e encontrei também bons pratos. [risos]

Eu costumo dizer que, se fosse possível, mudava-me imediatamente para a Galiza. Gosto sobretudo da zona mais a norte, longe das praias conhecidas, onde há menos gente. Acho que nesse aspeto geográfico também temos bastantes parecenças e, por isso, só podemos resultar bem juntos.

 

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