“De guitarras se fala nesta noite”. Delas e com elas. Foi assim que Nuno Marinho, diretor do Festival Django Portugal, apresentou o derradeiro concerto da edição deste ano, que teve lugar no Auditório da Biblioteca Orlando Ribeiro (Lisboa) este domingo. Um festival que já deu provas de que a música é mesmo uma linguagem universal e pode unir músicos e público em torno de um mesmo estilo partilhado: no caso, o jazz manouche.
Gypsy jazz, ou jazz manouche, são sinónimos e têm em comum a inspiração daquele que é conhecido como o seu criador, o guitarrista Jean “Django” Reinhardt. Belga de etnia rom (cigana), com grande projeção nas décadas de 1930 e 1940, considerado o impulsionador do jazz na Europa, mantendo uma certa distância do jazz afro-americano que se difundia pelo mundo. E que influenciou estilos tão variados como “o rock, o pop e o metal” e guitarristas como “Wes Montgomery, George Harrison dos Beatles ou Eric Clapton”.
Antes mesmo de os artistas da noite subirem ao palco, o serão foi começando discreto e harmonioso. Não havia pressa em sentar-se na cadeira: cada espectador foi ocupando o seu lugar quase silenciosamente e à espera de que o cenário se enchesse de música. Mesmo depois de terem passado mais de 30 minutos da hora marcada para o início, ninguém se demarcou do seu sítio, e o diretor do festival lá fez as honras de abrir o espetáculo com um simpático discurso.
Estavam assim apresentadas as estrelas da noite: os mexicanos Erik Kasten e Carlos Torres (guitarras) acompanhados por Tom Kessler (contrabaixo). Entraram timidamente, com um tema que parecia preencher as paredes de um café descontraído, mas depressa fizeram notar a sua maestria. Poderiam ter ainda sido traídos pela projeção sonora do espaço, longe de ser a ideal, o que não aconteceu pela cadência reconfortante dos primeiros acordes que ajudou a envolver a plateia e a aquecer corações.
Ouvidas as primeiras canções, já se percebia que a promessa (cumprida) era de qualidade e virtuosismo. Dos solos estonteantes de Torres à precisão dos acordes de Kasten, que se enleavam na força que Kessler aplicava às cordas do contrabaixo, não houve um momento em que o público mostrasse desagrado. E fez-se ouvir, mesmo a meio das canções ou entre os solos de cada músico, com aplausos sentidos e interjeições de admiração.
“Dou-vos pontos extra pelo bacalhau e pelas sardinhas assadas”, retribuiu Kasten humoradamente, agradecendo também pela oportunidade de poder tocar pela primeira vez na Europa com os seus “amigos”. Que, ao longo do concerto, foram aumentando em número, com a entrada em cena de alguns convidados-surpresa. Entre eles o próprio diretor do festival, também músico e professor de jazz, e o prodigioso violinista Marian Yanchyk, também membro da associação que organiza o evento.
Entre os temas mais standard do jazz manouche, o trio foi apresentando alguns temas internacionais vestidos com a mesma roupagem. Destaque para o chorinho brasileiro, evocado por diversas vezes: primeiro com “Perigoso”, depois com “Apanhei-te cavaquinho” e ainda “Cheguei”. Ouviu-se também uma canção romena e o original “Ojos que lloran”, composto por Torres, que fez ponderar sobre a existência de uma saudade mexicana.
No final do concerto, o compositor deu ainda a conhecer a sua ligação às artes plásticas, convidando o público a apreciar a sua exposição “Tiempos de la música” no átrio do auditório. Projeto em que o artista retrata em desenho, com tinta acrílica sobre papel, uma série de personagens relevantes do jazz mundial, entre elas o próprio Django Reinhardt, Consuelo Velásquez, John Coltrane ou Ella Fitzgerald.
À conversa com o EL TRAPEZIO, os músicos afirmaram o entusiasmo de terminar em Portugal a sua digressão europeia, que incluiu cidades como Berlim e Madrid, e revelaram a intenção de atuar mais vezes juntos. “Hoje o público conseguiu conectar-se connosco”, admitiu Erik Kasten, “e sentiu-se suficientemente íntimo, mas também poderoso”. Já Carlos Torres referiu que a plateia “compreendeu a estética do jazz manouche”, intercruzada com a influência mexicana e latino-americana trazida através da guitarra e do repertório.
Por seu lado, o organizador Nuno Marinho salientou o pioneirismo de criar um evento de gypsy jazz em Portugal. “Não existia aqui nada sobre este tipo de jazz, por isso começámos, a partir de 2015, a criar condições para os artistas deste género virem tocar ao nosso país”. Desta iniciativa, surgiu também a ideia de criar uma associação, concretizada no ano passado, com o intuito de proporcionar outras oportunidades: aulas e jam sessions para os músicos interessados, bem como mais pontos de contacto entre si. “Queremos fundir os músicos nesta linguagem comum [do jazz manouche] para que todos possam aprender uns com os outros e divertir-se”, acrescentou Marinho, que prevê “muitos anos pela frente” para o Django Portugal.