Nani Medeiros: “A cultura ibero-americana está-me mesmo no sangue”

A cantora brasileira apresentou esta sexta-feira o seu mais recente espetáculo, «Travessia», no Consulado Geral de Portugal em Sevilha

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Nani Medeiros (Porto Alegre, 1985) é uma artista que une o Atlântico pelas cordas da sua voz, sempre acompanhada das cordas das guitarras que admira. Seja da guitarra de sete cordas ou da portuguesa, com 12, faz do samba-canção e do choro a sua bandeira e, no fado, encontrou a raiz de um passado que descobre a cantar. Para ela, não importa mesmo a quantidade ou a forma: é o sentimento e a “verdade” no canto que ditam a sua felicidade e o sucesso na música.

Aos 15 anos, decidiu procurar o lado “interpretativo” da canção através da formação em artes cénicas. Começou a trabalhar em publicidade e, em 2014, lançou-se definitivamente na representação em vários musicais. No ano seguinte, estreou-se como apresentadora num canal da rede de televisão regional RBS TV, entrevistando artistas da cena musical porto-alegrense e brasileira. Uma proximidade com a música que a fez enveredar profissionalmente por esta área e experimentar uma fusão singular entre os ritmos brasileiros e o fado de Amália.

Depois de «Valentia», o primeiro trabalho discográfico editado em 2017, produziu no ano passado o espetáculo «Travessia», juntamente com o companheiro e músico Júnior Pita, onde apresenta as semelhanças e diferenças entre estes universos musicais. E que apresentou esta sexta-feira em Sevilha, diante de um público maioritariamente espanhol e muito interessado.

 

Como correu o concerto de sexta-feira?

Correu lindamente. Foi uma noite muito especial, com casa cheia. Senti-me muito feliz por cantar em Sevilha pela segunda vez, a convite do Centro Cultural Lusófono. Foi mesmo muito especial poder apresentar esse show, «Travessia», que a gente já construiu há um ano, caminhando pela música do Brasil – o samba-canção, o choro – e conversando com o fado. Fomos quatro em palco: eu na voz, a guitarra portuguesa, o violão de sete cordas e a viola-baixo. E tivemos um público muito carinhoso, que conhecia as canções e ficou muito impressionado com a nossa prestação. Várias pessoas até me disseram que parecíamos uma orquestra!

 

De onde veio então essa fusão da música brasileira com o fado?

Começou mesmo antes de vir morar para Portugal [em 2019]. Comecei a cantar o fado no Brasil em 2016 e, antes do fado, já cantava o samba-canção e o choro pela minha participação em alguns musicais. Portanto, o embrião desta mistura surgiu no Brasil e aprofundou-se quando passei a morar efetivamente em Lisboa.

É muito interessante ver também que, historicamente, existe esse encontro, principalmente numa época [nos anos 1950 e 1960] em que todos esses géneros coexistiam com muita força. Então a gente teve a intenção de trazer isso também através da instrumentação em palco, juntando o violão de sete cordas, característico do choro, e a guitarra portuguesa.

 

O que trouxe dessa passagem pelo teatro musical e também pela apresentação? De que forma essas duas atividades a ajudaram a construir o seu percurso na música?

No Brasil, participei em três musicais onde interpretei canções de grandes compositores brasileiros. Fiz uma homenagem ao compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues, que foi gravado por muitos cantores renomados como Caetano Veloso, Gal Costa ou Elis Regina, e também interpretei canções de artistas como Dalva de Oliveira ou Elizeth Cardoso. Então acho que a linguagem desse canto, do samba-canção e do choro, foi um auxílio para cantar o fado, que tem uma linguagem muito própria. Essa coisa interpretativa do teatro de revista me ajudou a buscar esse canto que, na verdade, não tem propriamente um ensino. É um estilo popular e urbano, por isso é preciso estar nas tascas para ver essa linguagem acontecer, além de escutar muito.

No caso da apresentação, em televisão, fazia um trabalho que todos os dias era ao vivo. Nada era gravado. Por isso, essa coisa de estar diante do público, a conversar e a entrevistar, dá uma certa cancha [prática] para o fado. Estar presente de corpo e alma.

 

Pode dizer-se que essa «Travessia» é também um autorretrato da sua viagem até Lisboa.

Exatamente. Acaba por ser a ilustração desse movimento todo que eu venho fazendo desde o Brasil. É muito bonito ver que tudo combina, nada destoa. Por exemplo, eu canto canções de Tom Jobim, de Noel Rosa, acompanhada pela guitarra portuguesa, e aquilo soa tudo muito bem.

Também fico muito feliz por sentir a recetividade das pessoas. O fado, por si, já traz essa conexão pela ambiência da dor e da saudade, mas a gente tenta fazer uma dinâmica no show que lhe dá outras possibilidades. No final do show [em Sevilha], por exemplo, a gente tocou um tema brasileiro muito popular, «Sonho Meu», gravado por Maria Bethânia e escrito por Dona Ivone Lara, e pusemos a guitarra [portuguesa] a fazer o ritmo do cavaquinho. E as pessoas vieram depois falar comigo sobre isso, dizendo que perceberam essa brincadeira. Foi muito interessante mesmo.

 

O que acha da relação dos portugueses com a música do seu país?

Arrisco-me a dizer que os portugueses conhecem mais da música brasileira do que os brasileiros conhecem da música portuguesa. Acho que isso se dá, historicamente, pelas novelas que aqui passaram, com trilhas sonoras de Chico Buarque, Dorival Caymmi, Tom Jobim, e que tiveram uma função [de coesão] social. Sou muitas vezes surpreendida positivamente por isso.

 

E o que sente quando canta o fado?

Sinto uma mesma nostalgia [do fado cantado por portugueses]. Emocionalmente vem de um mesmo lugar. É como se eu tivesse sido mordida pelo bichinho do fado (risos). Eu, por exemplo, costumo cantar o fado com o sotaque português porque, para mim, só me sabe a fado – só tem mesmo um sentido – com esse sotaque. E sou frequentemente parabenizada por isso. Fico muito feliz, assim, por ser abraçada com esse meu trabalho de fusão.

 

Acha que o seu sotaque nativo não traria a mesma verdade, a “sua” verdade?

Frequentemente me perguntam isso. Eu sei que há pessoas que, não sendo portuguesas, cantam o fado com o seu sotaque. Até já experimentei fazer isso para ver como me sentia, mas acho que daí saiu um híbrido. Não senti o fado propriamente. Acho que a entoação das palavras, a métrica, é muito diferente. Quando colocava os trinados e a linguagem [típica] do fado, eu sentia mesmo que faltava [algo].

Só consigo sentir mesmo as palavras e a intenção que quero dar no meu canto quando busco o sotaque português. Por não ser o meu sotaque de nascimento, é uma coisa que venho construindo, estudando, repetindo. Quando não sei, também peço para os meus amigos fadistas me corrigirem. Não tenho problema com isso. Prefiro que me corrijam do que cantar com uma acentuação errada.

 

É também, de alguma forma, a sua busca pela lusofonia.

Exato, exato. Eu acho que essa linguagem própria do fado é o que lhe dá sentido, mas também não quero ser purista. Pode haver artistas que o façam de outra forma. Eu acho que o importante é fazer sentido para a pessoa que canta. Se for verdadeiro, é o que importa.

 

Já me disse que não é a primeira vez que esteve em Espanha. Por onde mais andou?

Já estive em Madrid e em Barcelona. Gosto muito dessa terra. Sinto o povo muito quente, muito vivo. É mesmo muito prazeroso. E voltar agora a Sevilha para cantar foi incrível, principalmente com este novo trabalho.

 

Isso fá-la querer criar pontes com a língua espanhola ou o português é mesmo a sua praia?

Acho [o espanhol] muito bonito e gostava de aprender alguma coisa. Por ser do Rio Grande do Sul, do estado mais ao sul do Brasil que faz fronteira com o Uruguai e a Argentina, eu tenho mesmo essa vontade de querer conhecer e de escutar. Apesar disso, fico um pouco distante pela questão da linguagem, que é muito particular. Mas ainda vou, em algum momento, aprender para tentar cantar (risos).

 

Então não é no próximo álbum que a vamos ouvir a cantar em espanhol.

Quem sabe!

 

Ainda neste raciocínio, que visão tem do espaço ibero-americano onde nos inserimos?

Eu acho que todos [os ibero-americanos] temos um bocadinho [de herança]. Se olharmos para trás, percebemos isso. Eu estou, neste momento, pesquisando sobre a árvore genealógica da minha família e acabei descobrindo que, pelo lado dos avós paternos, tenho ancestrais nascidos em Espanha e outros em Portugal: na Ilha Terceira, Coimbra… Eu acho que isso está mesmo no sangue. É algo que nem conseguimos explicar muito bem, mas é muito genuíno. Falo também da música, que nos faz chorar e a gente não entende o porquê, mas que sentimos como verdadeira dentro de nós.

 

Que podemos esperar então da sua música nos próximos tempos?

Quero contar para as pessoas que o «Travessia» sairá em EP já em 2024. Esse trabalho foi gravado no início de 2022, aqui em Lisboa, para um projeto chamado MUP – Música Urbana Portuguesa. E ficou tão bonito que mal posso esperar para o mostrar.

Além disso, já estou preparando o meu segundo álbum. O primeiro, «Valentia», foi gravado no Brasil e lançado em 2017 por um selo independente. Esse segundo já comecei a gravar no início deste ano e é um álbum que, querendo ou não, tem a linguagem da guitarra portuguesa e do fado. Como eu não componho – só interpreto – tive a alegria de receber composições feitas especialmente para mim por nomes do Brasil com trabalhos muito bonitos: o letrista Roberto Didio, músicas do pianista Cristóvão Bastos, de João Camarero. Estou muito contente com essas canções e acho que vamos ter aí “fados brasileiros”, que juntam todas essas linguagens que eu canto.

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