Bilinguismo Ibero-americano: que não fiquemos apenas no primeiro passo

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Recebi com alegria as notícias da XXVIII Cimeira Ibero-americana de Chefes de Estado e de Governo, realizada na República Dominicana agora no final de março. São muitos os fatos relevantes, a começar pelas presenças de Felipe VI, Rei da Espanha, de Pedro Sánchez, presidente do Governo espanhol e, do lado português, tanto de António Costa quanto de Marcelo Rebelo de Sousa, respectivamente primeiro ministro e presidente do país luso. Esse tipo de audiência dá cada vez mais visibilidade e importância ao evento aqui na Península Ibérica, com reflexos em toda a Europa.

A presença de representantes de peso nessa Reunião de Cúpula – o Brasil foi representado pelo Ministro de Exteriores, Mauro Vieira – pode ajudar também a aumentar a possibilidade de que os acordos ali tratados e assinados venham a ter realmente uma efetiva aplicação prática entre a cidadania dos países do bloco (e não sirvam somente para adornar discursos políticos, como já estamos cansados de ver).

Junto a temas como meio-ambiente, arquitetura financeira, direitos digitais e segurança alimentar, recebeu destaque também a questão linguística, que foi objeto de um documento específico sobre o tema, intitulado “Comunicado especial sobre o bilnguismo espanhol-português e a promoção do uso do espanhol e do português como línguas de comunicação e de trabalho nos âmbitos da ciência, tecnologia, inovação, cultura e relações internacionais”.

O nome do documento é longo e pomposo. Seu conteúdo traz palavras bonitas e aparentemente cheias de boas intenções. Falando dos dois idiomas, afirmam, por exemplo, que “em virtude de seu caráter de línguas irmãs, complementárias e mutuamente compreensíveis, são matriz de um rico acervo cultural, linguístico e humano compartilhado globalmente por 850 milhões de pessoas (…) se comprometem a promovê-las nestes e outros âmbitos impulsionando um efetivo bilinguismo espanhol-português”.

Como vemos, o primeiro passo foi dado. E é um passo muito significativo, porque sem o aval dos chefes de Estado nada avançaria. Então, aplaudimos o fato e reconhecemos a fundamental importância do que aconteceu em Santo Domingo. No entanto, ao lado de nossa autêntica esperança convive também um certo receio.

A incógnita dos próximos passos

As altas esferas confabulam, aparecem nas fotos e assinam documentos. Depois, voltam aos seus países para tratar de outros inúmeros assuntos – todos de grande importância, é claro; ninguém aqui está tirando o mérito de ninguém. O que acontece é que, entre a teoria e a prática, o caminho é longo, trabalhoso e, quase sempre, entorpecido por questões administrativas e burocráticas, ainda mais quando se trata de acordos que envolvem vários países, cada qual com suas próprias leis, ideologias, diretrizes e realidades sociais.

No caso do português e do espanhol, falamos de um espaço de mais de trinta países e cerca de 800 milhões de pessoas. E, se consideramos os outros países da CPLP (e não somente Portugal e Brasil), órgão que também parece querer se unir à empreitada, falamos de quatro continentes diferentes: América, Europa, África e Ásia. A CPLP, pra quem não sabe, é a Comunidade de Países de Língua Portuguesa que, segundo o próprio António Costa, já tem um orçamento aprovado de um milhão de euros destinados à cooperação com a Comunidade Ibero-americana.

Ou seja, colocar em prática a difusão do português nos países hispano-falantes e do espanhol nos países luso-falantes requer um planejamento muito complexo que, fatalmente, passará pelos meios digitais, o que não deveria significar, necessariamente, abrir mão de ações presenciais. Todos sabemos – já é hora de assumir – que a educação digital, pelo menos por enquanto, deixa muito a desejar em relação aos ensinamentos presenciais.

Sobre como levar a cabo esse trabalho hercúleo, não tenho todas as respostas. Mas, sim, alguns alertas, alicerçados em minha experiência profissional. Há mais de trinta anos a Língua Portuguesa é minha ferramenta de trabalho, em empresas de comunicação, escolas de idiomas e universidades. Ultimamente, inclusive, minha experiência se estendeu a cursos digitais tanto para o EL TRAPEZIO quanto para a Organização de Estados Ibero-americanos (OEI).

Em resumo, quero deixar aqui, a quem interessar possa, algumas bases fundamentais para o ensinamento de português-espanhol, em qualquer uma dessas duas vias:

  • É condição inequívoca fazer uso, ao nosso favor, do grande grau natural de intercompreensão existente entre o português e o espanhol.
  • Como condição conectada à anterior, faz-se necessário o uso de um método específico de ensinamento de espanhol para luso-falantes e de português para hispano-falantes. Obviamente, não é o mesmo ensinar português a um colombiano que a um francês; não é o mesmo ensinar espanhol a um angolano que a um estadunidense.
  • O dito anteriormente traz consequências: grande porcentagem dos livros de português e de espanhol para estrangeiros disponíveis no mercado não servem para o ambiente ibero-americano; grande porcentagem dos métodos de ensinamento de português e espanhol para estrangeiros não servem para o ambiente ibero-americano. O ambiente linguístico ibero-americano tem claras peculiaridades que devem ser levadas em conta para uma maior eficácia na aprendizagem.
  • É condição inequívoca que a professora ou o professor de espanhol para luso-falantes domine o idioma português, assim como é condição inequívoca que a professora ou o professor de português para hispano-falantes domine o idioma espanhol. Somente desta maneira a professora ou professor poderá operar os métodos de contraste linguístico relevante, abordando diretamente os pontos que podem suscitar dúvidas.

Esperamos que, a partir da Cimeira de Santo Domingo, o panorama do português e do espanhol comecem a mudar no espaço iberoamericano. Além de algumas questões do trabalho do professor que acabamos de comentar, é sumamente importante incutir na sociedade ibero-americana a ideia do quão vantajoso é saber, praticamente de antemão, dois dos maiores idiomas do mundo. E, na medida do possível, seria de grande ajuda também fomentar entre os jovens o sentimento de orgulho de fazer parte de uma comunidade linguística, histórica, social e cultural formada por mais de 800 milhões de pessoas, em cerca de trinta países de quatro continentes, que representa uma décima parte do PIB mundial e uma quinta parte de toda a superície terrestre do planeta. Nem mais, nem menos.

Orgulhemo-nos, pois, da iberofonia e façamos pressão social e midiática para que os acordos de Santo Domingo saiam do papel.

 

Sérgio Massucci Calderaro

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