Não existe língua forte sem literatura

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Voltamos a colocar o foco na Língua Portuguesa, em busca de respostas para as causas de tão parco interesse por um dos idiomas mais falados do mundo. Neste artigo, a análise se centra na Literatura e nos duvidosos critérios do Prêmio Nobel.

Confesso ter emprestado o título deste artigo de um texto que me chamou a atenção pela lucidez da análise. A frase “não existe língua forte sem literatura” foi retirada de Pedro Almeida, jornalista, professor e especialista em marketing editorial, com passagens por algumas das maiores editoras do Brasil. Gosto dela porque vai direto ao ponto, sem rodeios.

Podemos elencar vários fatores que tornam uma língua forte, sendo o econômico um dos principais. Já toquei nesse assunto em meu último artigo para EL TRAPEZIO e também, de forma mais aprofundada, em textos acadêmicos na Revista Espéculo e na Revista de Filología Románica, ambas publicações da Universidad Complutense de Madrid. Outro texto a se destacar é “La periferia de la periferia: notas sobre Literatura Brasileña”, publicado na revista digital Cronopio. Ou seja, há tempos me debruço sobre o assunto, deliberando sobre estas ou aquelas causas e consequências.

Há, no entanto, um fato inquestionável: o poder que a literatura exerce sobre a imagem e importância de um idioma. Shakespeare, Dante, Goethe, Cervantes ou Proust são nomes assaz conhecidos em todo o mundo. De língua portuguesa, talvez soe ultimamente José Saramago, pelo Nobel que ganhou em 1998. Talvez também o de Pessoa ou o de Camões, mas em menor medida. Entre os brasileiros, sejamos realistas, não há nomes de vulto no cenário mundial. Em círculos restritos, quiçá um Jorge Amado aqui, um Machado de Assis acolá ou uma Clarice Lispector, que nos últimos anos recebeu boas edições espanholas da Editora Siruela. É pouco, pouquíssimo, quase nada.

Podemos trabalhar com inúmeros critérios. O argumento da qualidade literária é um campo deveras movediço, pela subjetividade que traz em si e pelos cambiantes cânones literários de cada época e geografia. Como medir a qualidade de um Camilo Pessanha frente a um Paul Verlaine? É melhor Flaubert ou Machado de Assis? Guimarães Rosa ou James Joyce? Chico Buarque ou Bob Dylan? São perguntas sem resposta e não entrarei nesse caminho pantanoso.

O Prêmio Nobel de Literatura como parâmetro

Outro parâmetro mais numerável é o do Prêmio Nobel de Literatura, que também, sabemos, envolve interesses políticos e econômicos. Repassemos alguns fatos e números: celebrado desde 1901, foi somente em 1913 que um não-europeu ganhou a contenda (Rabindranath Tagore – detalhe: esse prêmio não foi oficialmente atribuído à Índia, mas sim ao chamado Raj Britânico, que era a Índia colonial da época, subjugada às forças britânicas); o próximo não-europeu foi Sincalir Lewis, dos Estados Unidos, em 1930. Tanto Tagore quanto Lewis escreviam em inglês. Tivemos que esperar até 1945 para ver um prêmio fora do eixo Europa-Estados Unidos ser entregue à chilena Gabriela Mistral. O primeiro – e até agora único – em língua portuguesa veio para José Saramago em 1998, quase um século depois de instaurada a premiação.

Em uma observação por países, os dez primeiros postos ficam com a França (14 vezes premiada), Estados Unidos (10), Reino Unido (8), Suécia (7), Alemanha (6), Itália (6), Polônia (6), Espanha (5), antiga União Soviética (5) e Dinamarca (4). Será que as pessoas desses países escrevem melhor que as de outros? Acho que não é o caso (só para contextualizar a complexidade da questão: faz mais de um século que a Teoria Literária debate sobre o conceito de “literariedade”, sem conclusão satisfatória. “Literariedade” seria a qualidade que diferencia um texto literário de um não-literário. Não há resposta exata para isso e, provavelmente, nunca haverá). Parece-me óbvio que o Prêmio Nobel de Literatura considera tanto fatores literários como extraliterários, sendo que estes últimos talvez tenham maior importância do que os primeiros.

Ainda considerando o Nobel de Literatura, façamos um breve apanhado percentual por idiomas: em língua inglesa temos 24% dos ganhadores; em francês, 13%; em alemão, outros 13%. Prefiro parar por aqui, porque o panorama me desanima. Metade dos 122 prêmios distribuídos até hoje estão em mãos do inglês, do francês e do alemão. É desalentador constatar que o concurso literário mais prestigiado do mundo se restrinja a um universo tão pouco representativo. Idiomas no mundo há milhares (só o Brasil conta com mais de cem). Concordo que muitos deles não produzem literatura escrita e comercializada, mas, mesmo assim, ficaríamos com dezenas e dezenas de idiomas no mundo com autores que escrevem, editam, publicam e vendem. Onde estão todos eles para os senhores do Prêmio Nobel?

Antes que eu me esqueça, faço aqui um adendo: na lista percentual dos idiomas do Nobel, o espanhol alcança respeitosos 9% dos prêmios, somando Espanha, Chile, Colômbia, México, Guatemala e Peru. Devido às circunstâncias, é um número louvável.

Mas, enfim, leitor amigo, você ainda tem a certeza de que a distribuição do Prêmio Nobel de Literatura obedece somente a critérios literários? Isso é uma conversinha-pra-boi-dormir que nem mesmo os mais ingênuos hoje em dia acreditariam.

Vamos ao português

Já o português, com o único prêmio do Saramago, fica com reles 0,8%. Vejam só: um idioma que está entre os seis mais falados do mundo tem que se resignar com essa porcentagem insignificante. No entanto, não estou aqui para reclamar, mas sim para tentar vislumbrar possíveis caminhos para uma solução à tal disparidade. Não quero mencionar novamente as questões econômicas e mercadológicas, porque todos já conhecemos bem a influência do dinheiro e do mercado no âmbito literário, no cultural e em todos os outros âmbitos de nossas vidas.

Um dos pontos de vista que quero destacar é o linguístico. Aos olhos do mundo, o português e o espanhol são praticamente a mesma língua. E avanço: aos olhos de boa parte do mundo, o português mais parece um dialeto do espanhol. A falta de escritores em língua portuguesa no imaginário das pessoas contribui para essa visão distorcida. O português é uma língua rara, exótica, esquisita e pouquíssimo conhecida. O que nos salva é a bossa-nova e alguns pendões como Caetano Veloso e, claro, Saramago. Poderíamos citar também as telenovelas brasileiras, que podem até difundir a cultura, mas não o idioma, já que elas costumam ser dubladas quando transmitidas em países estrangeiros.

O português é debilíssimo em termos de difusão cultural. Não há praticamente políticas públicas que funcionem, tampouco boa articulação entre os órgãos nacionais e internacionais que seriam responsáveis por essa empreitada. O descaso rola solto e a passividade dos altos funcionários públicos no exterior é notória. Uma coordenação institucional envolvendo os diversos organismos que, teoricamente, têm por dever batalhar pela ascensão linguístico-cultural da lusofonia se faz cada vez mais flagrante. Bato nessa tecla: é um dever dessas organizações. Não estamos pedindo favor. Estamos pagando impostos para que esses senhores e senhoras façam o que não vêm fazendo. E que não me venham falar de falta de verba. É possível fazer algo com o dinheiro que se tem. Falta mesmo é boa-vontade. Falta o ideal de se trabalhar por uma causa. E talvez também falte competência.

Deixando de lado o tom panfletário, voltemos ao caso do famigerado Prêmio Nobel de Literatura. Eu acho, sinceramente, que a luta deve ser inversa, visto que a academia sueca e toda a estrutura que a sustenta durante mais de um século não vão mudar da noite para o dia. Mais do que estar mendigando por um prêmio de literatura, deveríamos passar a ignorar essa injusta premiação, evidenciando todos os seus absurdos. O mais latente talvez seja este que já comentamos aqui: alguém mesmo, em sã consciência, pode acreditar que mais da metade da melhor literatura mundial do último século foi escrita somente em três idiomas (inglês, francês e alemão)? Às favas o Nobel.

Sei que estou iniciando uma luta inglória que, para que triunfe algum dia, exigiria a massiva adesão da imprensa. Uma opção seria eleger certames menores para que virem notícia, como o Prêmio Princesa de Astúrias de las Letras, o Prêmio Camões ou outros galardões regionais e nacionais de outros países e idiomas. Sei também que todas essas premiações acabam, de uma forma ou de outra, obedecendo a regras mercadológicas, mas imagino – talvez ingenuamente – que em menor medida. O que não dá mais pra engolir mesmo é o pomposo, elitista e segregador Nobel de Literatura como único parâmetro.

É um fato que não existe língua forte sem literatura. Mas elevar a literatura de um país não é somente papel dos literatos. É preciso articulação pública e o planejamento inteligente de ações eficazes (e não somente a promoção de atividades para constar em relatórios de fim de ano). É preciso também o engajamento da imprensa, dando importância ao que é importante e tirando importância daquilo que é viciado. Seria preciso que o jornalismo atuasse com visão crítica, reivindicadora e menos subserviente. E também é preciso o envolvimento popular, o que nos faz retornar, outra vez, à necessidade de políticas públicas de fomento à leitura e de apoio ao livro.

Dizia Camões em Os Lusíadas que “o fraco rei faz fraca a forte gente”. É a impressão que eu tenho com a língua portuguesa e sua literatura. Temos um idioma inegavelmente forte, vivo, pulsante, pluricêntrico e multicultural, com cerca de 300 milhões de falantes em nove países e quatro continentes, o terceiro mais falado no ocidente e o primeiro no Hemisfério Sul. O que o enfraquece é a atuação – ou melhor, a falta de atuação – dos nossos fracos “reis”.

Sérgio Massucci Calderaro

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