Sobre dulcinéias e rocinantes

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Há cem anos, Cristiano Cordeiro (1895-1987), num discurso pronunciado no Instituto de Ciências e Letras, no Recife, defendeu a solidariedade entre os trabalhadores e intelectuais. Na sua visão, «as fronteiras das diferentes pátrias, naturais ou fictícias que elas sejam, não podem impedir o trabalho solidário dos homens».

Formara-se em Direito no ano anterior. Antes disso, já pugnava a favor dos operários. O seu discurso era uma saudação a um conferencista estrangeiro: Carlos Angulo y Cavada, «um novo cavaleiro andante de um novo ideal: o ibero-americanismo». Com a eloquência ao mesmo tempo harmoniosa e arrebatada que «abundantemente jorra dos cimos nevados das montanhas ibéricas por todo esse maravilhoso país do sol e da graça, que é a Espanha».

Parecia um contraponto àquela civilização individualista, cínica e anárquica, na qual também enxergava «grosseiro materialismo», e «em que tudo é objeto de mercancia, até mesmo a honra».

Nada melhor como antídoto que um idealismo acompanhado de realismo, completando-se, como num só processo de ação. Dom Quixote e Sancho Pança afinados. Mas sem esquecermos de Rocinante, onde o corpo das idealizações vai montado.

Mais do que só um elogio do conferencista, o seu discurso serve como uma abordagem crítica das ideias. Ele qualificava o pan-brasileirismo – sinônimo do americanismo – de canhestro, e via em certos núcleos patrióticos da América mero jacobinismo. Embora não discordasse da frase de Sáenz Peña – «tudo nos une e nada nos separa» – qualificava-a de pouco profunda, pela simples razão de que fora pronunciada por um político profissional.

Apoiando-se em autores os mais diversos, não via com bons olhos que o Brasil quisesse ser percebido como exceção, isolado ou algo especial na América do Sul.  Chega mesmo a afirmar que «Portugal saiu dos flancos de Castela».

Considera que, como ideal político, o ibero-americanismo é mais consistente do que o pangermanismo. Para prosperar, caberia adaptar-se ao americanismo. Ambos, reunidos, não deveriam prescindir do feminismo. Fundamental em uma sociedade realmente nova. Já que «o homem nunca será livre enquanto a mulher permanecer escrava». Recorre até ao chavão popular: a frase «na mulher não se bate nem com uma flor» não deve significar palavras de efeito retórico ou simples galanteio, «mas uma norma deliberdada de conduta, um verdadeiro postulado de moral social».

Se na defesa das ideias e dos ideais do ibero-americanismo menciona explicitamente o Quixote, a fraternidade tem um nome de mulher: Dulcinéia.

Curiosos e irônicos os rumos da História. Angulo y Cavada termina por ser associado ao recorte iberista do franquismo. Cordeiro torna-se um dos mais relevantes líderes do Partido Comunista no Brasil.

Parodiando a frase citada, o que une e separa os iberistas, os iberoamericanistas? Uma resposta correta tem de ser buscada na História. Se, na década de 1920, os brasileiros aplaudiam os feitos do aviador Ramón Franco, nas de 1930 e 1940, sabiam dos horrores praticados pelo seu irmão, Francisco. Em 1942, por exemplo, foi interceptado e divulgado pelo Diario de Pernambuco um Boletim da Falange espanhola. Trazia instruções específicas:

«Manter vivo o espírito de ação orientando-o principalmente no sentido de estimular o sentimento lusitano em oposição ao flutuante panamericanismo. Muito cuidado para não empregar o termo hispanidade nem hispanismo, palavra que pode ferir a suscetibilidade extremada dessa gente».

Numa possível intra-história do Iberismo será útil visitar personagens e fatos que se escondem nos arquivos ou foram olvidados.

Um século depois do discurso de Cordeiro, ainda falta uma agenda comum aos países ibéricos e ibero-americanos. Solidariedade e Fraternidade não parecem tão (in) viáveis em 2023 quanto (não) o eram em 1923. Já não é este um tempo da hegemonia dos Quixotes e Sanchos, e sim das Dulcinéias e dos Rocinantes.

 

Mário Hélio Gomes de Lima

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