Desconhecimento

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A Raia é frequentemente referida como uma das fronteiras mais antigas da Europa. Enquanto a Europa atravessava séculos de mudanças violentas, a fronteira entre Espanha e Portugal manteve-se relativamente estável. Hoje, a fronteira está aberta, mas na verdade existe um obstáculo à fraternidade. Não é uma barreira física, mas sim a barreira do desconhecimento.

Parece estranho falar de “desconhecimento” quando hoje, os nossos países desenvolvidos, democráticos e integrados na União Europeia, gozam de uma relação bastante boa. Somos livres para visitar, trabalhar e viver nos países uns dos outros como se fossem o nosso. Narramos histórias de deliciosas refeições, magníficas praias e amores inesquecíveis que descobrimos nas terras uns dos outros. Espanha e Portugal têm tanto para mostrar um ao outro… mas isso também mostra que ainda há tanto que não conhecemos.

Quando vim para Madrid, há cinco anos, vinha com a ideia de começar uma carreira de ensino de línguas, nomeadamente inglês. Porquê? Porque, durante mais de 30 anos da minha vida, vivi usando inglês e português ao mesmo tempo. Sou totalmente fluente em inglês e sei identificar cada um dos Estados Unidos da América e cada província do Canadá sem nunca ter vivido fora de Portugal. Como? Porque esses países, especialmente a América, querem ser conhecidos. Não sei se possa dizer que a Espanha tem o mesmo efeito sobre Portugal, mas penso que não tem.

Pensei que ensinar inglês em Espanha seria apenas um emprego para poder ir sobrevivendo e mais tarde decidir o futuro. Vinha sem saber nada de Espanha. Praticamente sem conhecer a sua geografia nem a sua magnífica riqueza linguística. A improvisar portunhol. A pensar que “logo se vê no que dá”. E não fazia ideia que ia descobrir um país tão semelhante ao meu. O meu espanhol melhorou rapidamente, tornei-me cada vez melhor no meu trabalho, senti-me cada vez mais como se estivesse em casa, cada vez mais forte e realizado como indivíduo. E assim compreendi que conhecimento é liberdade.

Para quem nunca sai do sítio onde nasceu, o mundo é um lugar minúsculo. A ignorância é a origem dos preconceitos. É o pior que podia ter acontecido aos nossos países: as ditaduras do século XX.

O fascismo, por natureza, é a exaltação do nosso e a rejeição do alheio. Espanha e Portugal esconderam-se um do outro, isolaram-se atrás de uma Raia fechada. Portugal era a terra do contrabando, das toalhas, dos cigarros, e pouco mais sabiam os espanhóis de nós.

Entretanto, continuava o progresso das grandes democracias do mundo. Até mesmo a França e aAlemanha, antes inimigos mortais, compreenderam a necessidade de criar a União Europeia,enquanto que nós, aqui na Península, continuámos de costas voltadas uns para os outros, aferrados no rancor e negando o perdão, até ao ano 1986. É por isso que hoje, em 2019, temos de desfazer o que as ditaduras fizeram à imagem dos nossos países, curar as feridas do desconhecimento e dos preconceitos. E isso demorará tempo.

Apercebi-me de que ainda há um sentimento negativo de alguns espanhóis em relação aos franceses: “eles não gostam de nós”. Que alguns franceses tratam os espanhóis como se lhes fossem superiores. Todavia, infelizmente também há alguns portugueses que acusam os espanhóis do mesmo. Mas isso acontece por causa do desconhecimento mútuo e pode ser remediado estendendo uma mão amiga ao vizinho, rejeitando os preconceitos.

As generalizações são perigosas, seja em que caso for. Pensar que “eles são todos iguais” não só é factualmente incorreto, mas também tremendamente injusto. Se não queremos que “eles” nos vejam a “nós”como “todos iguais”, então também não podemos tratá-los a “eles” dessa forma.

O rápido desenvolvimento das relações comerciais internacionais na Península Ibérica é um bom sinal. Mas não chega. Há cada vez mais espanhóis interessados em aprender português e vice-versa. Mas estamos apenas no princípio. Só passaram trinta e três anos desde 1986. Ainda temos de insistir muito no ensino de português em toda a Espanha. Ainda vai haver muitos alunos de nível básico que, interrogados sobre a geografia de Portugal, os rios, as cidades, a música e a cultura, encolherão os ombros. Ainda será muitas vezes referido o Fado como único exemplo conhecido de música portuguesa. Continuará a ver mal-entendidos e diferenças na mentalidade.

E se mais espanhóis tivessem interesse em aprender português, não seria tão surpreendente a descoberta de uma gramática e uma fonética mais conservadoras, mais próximas daquilo que o espanhol foi no passado, e das “palavras esquecidas” que na verdade existem em espanhol apesarde raramente serem usadas: jantar, parabéns, cão, grávida, etc. Os espanhóis, na verdade, descobririam as nossas origens comuns. Porquê ter medo disso?

No entanto, enganar-nos-íamos se pensássemos que o desconhecimento é exclusivo do lado espanhol. Se assim fosse, eu teria chegado a Espanha com total fluência em espanhol, e sabendo localizar qualquer grande cidade espanhola no mapa, sem ter tido de viver aqui para aprender essas coisas. Sim, eu desconhecia a Espanha, quase por completo. Não imaginava que poderia ser feliz aqui, que descobriria um povo irmão, com mais semelhanças do que eu imaginava possíveis. Sentindo-me vulnerável na ignorância, lutei para me libertar dela e sinto-me muito melhor hoje.

O respeito, o amor, a harmonia, a amizade, a paz, a liberdade, a felicidade, a prosperidade… não são, de maneira nenhuma, coisas que podemos tomar como garantidas nas nossas vidas. São ideais que devemos perseguir, nos quais devemos acreditar e pelos quais temos de trabalhar. É nosso dever tomar a iniciativa de construir uma vida com base nesses ideais. A relação entre Espanha e Portugal já é boa, mas temos de fazer por garantir que a Raia não se volte a fechar, que essa relação não se perca e que continue a melhorar. A chave está na curiosidade, ou melhor, na nossa capacidade (ou falta dela) de suscitar a curiosidade do vizinho, de ganhar o respeito dele, de cativar o amigo e de o fazer compreender que é irmão.

João Pedro Baltazar Lázaro

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