«A música pode ter um impacto positivo na vida das pessoas e ser uma ferramenta de transformação social»

O maestro da orquestra sesimbrense Zana Batuta tem dividido a sua carreira musical entre Portugal e Espanha

Comparte el artículo:

O EL TRAPÉZIO entrevistou o maestro Juan Manuel Guevara, o condutor principal da orquestra Zana Batuta. Esta é uma orquestra de jovens com sede em Sesimbra. Antes de chegar a Península Ibérica, onde tem feito as suas atividades musicais, fez parte da orquestra venezuelana Simón Bolívar. Fez os seus estudos de maestro com os condutores Miguel Romea e Andrés Salado.

AR: Como e quando começou a tua paixão pela música?

JG: Acho que foi quando eu tinha dez anos e tive o meu primeiro ensaio. Naquele dia, peguei num contrabaixo pela primeira vez, aprendi o nome das cordas, o ritmo que devia tocar e, de repente, já estava a tocar com outras crianças. Pouco tempo depois, já estava a tocar e a viajar pelo mundo com a Orquestra Nacional Infantil da Venezuela. Pouco tempo depois de ter começado, o meu sonho de tocar um instrumento tornou-se realidade e comecei a tocar a viola. A viola não me cativou e decidi mudar para o contrabaixo.

AR: A música tem o poder de salvar vidas?

JG: Não sei se salva-vidas, mas pelo menos não mata. Brincadeiras à parte, durante minha experiência no El Sistema, vi como a música pode mudar a vida das pessoas de maneiras surpreendentes. Conheço casos de vários colegas que, graças à música e à integração social encontrada no El Sistema, conseguiram se afastar de situações perigosas, como a criminalidade e as drogas. O El Sistema é um programa muito diverso, com pessoas de diferentes estratos sociais e com valores que podem ser contrastantes, mas a música consegue uni-los. Portanto, acredito que a música pode ter um impacto positivo na vida das pessoas e ser uma ferramenta de transformação social.

AR: Habitualmente, quando alguém se interessa pela música começa por aprender um instrumento. Como surgiu o interesse pela carreira de maestro?

JG: Sim, efetivamente, quando alguém começa a estudar música, uma das coisas que mais ilusão lhe faz é começar a tocar um instrumento. No meu caso, como já mencionei, comecei com a viola e acabei ficando com o contrabaixo. Estando aqui na Europa e no meio da recente pandemia, surgiu a oportunidade de assistir a um curso de direção oferecido pela Academia Opus 23 em Espanha com os maestros Miguel Romea e Andrés Salado. Durante aquele curso, descobri que a direção era algo que me apaixonava e que gostaria de fazer de forma profissional. Nunca tinha dirigido antes, mas desfrutei tanto dessa experiência que finalmente decidi dedicar-me à direção. Foi como se algo dentro de mim que estava latente tivesse acordado, e a partir daquele momento soube que queria seguir esse caminho e explorar o que a direção de orquestra tinha para oferecer.

AR: O que é preciso para se ser um bom «condutor» de uma orquestra?

JG: Para ser um bom maestro, é necessário combinar habilidades técnicas, musicais, pessoais e humanas. Da mesma forma, um bom maestro sabe claramente o que quer, alcançando-o com o menor gasto de energia possível. O meu professor Miguel Romea sempre nos diz: «nunca chegue a um ensaio sem saber o que quer alcançar naquele dia». Além disso, um bom maestro tem uma visão global do que precisa ser alcançado e sabe discernir o que é importante em cada momento. A capacidade de ver a essência dentro do todo é fundamental para alcançar a eficiência no trabalho com a orquestra. Em resumo, ser maestro é uma profissão totalmente holística e requer uma combinação de habilidades e qualidades muito específicas.

AR: Como vê o estado da cultura em Portugal?

JG: Por si só, definir a palavra «cultura» é um desafio. Para efeitos da minha resposta, definirei cultura como o conjunto de manifestações artísticas que refletem os valores e crenças de um grupo humano. Portanto, cultura e identidade vão inexoravelmente de mãos dadas. A arte, independentemente das suas formas e entendida como uma expressão da cultura, é um processo fundamentalmente criativo. Este elemento criativo define-nos como seres humanos e, pelo menos até agora, diferencia-nos do automatismo das máquinas. Atualmente, a nossa sociedade na sua rotina, está envolvida num mecanismo que nos torna insensíveis a nós mesmos e aos nossos semelhantes. Pensemos na última vez que olhámos para o céu para ver as estrelas ou simplesmente paramos para olhar para a árvore que está no caminho para o trabalho. Com frequência, vamos como zombies, sem sermos conscientes de como chegámos a casa ou de como fizemos tal ou qual coisa. E aqui está o problema. Neste contexto, é muito difícil que a criatividade se expresse. A cultura e as manifestações artísticas são um reflexo do mundo interior dos povos e um dos elementos que indica se uma sociedade está condenada a uma existência estéril e monótona ou a novos e superiores estágios de desenvolvimento. Por isso, é assim que vejo a cultura, não só em Portugal, mas em todo o mundo. Uma maior compreensão disto, sobretudo por parte daqueles que ostentam maior poder e influência, permitirá que a arte não seja como um enfeite que nos entretém e fica bonito no centro da mesa, mas sim uma força vital em prol do desenvolvimento dos nossos povos.

AR: O que a música iberoamericana tem de especial para começar a captar, cada vez mais, espectadores ao redor do mundo?

JG: Falar de música ibero-americana é infinitamente amplo. Dentro de um só país da nossa grande ibero-américa existem tantos estilos e géneros que poderiam ser feitas enciclopédias. É verdade que, por diversos motivos históricos e sociais, se costuma falar de géneros característicos de determinadas regiões, mas aqui caímos na armadilha da generalização. Espanha não é apenas flamenco, assim como a América Latina não é apenas reggaeton, ou Portugal apenas fado. Se começarmos a cavar, perceberemos que, fora da retórica e da estética implantada pela «mass media», existem elementos muito interessantes e «especiais». Se sabemos mais, podemos ver e entender mais. E não apenas isso, também nos torna mais humildes e tolerantes, ao percebermos a imensidão de coisas que não sabemos e reconhecer e apreciar outro tipo de expressões. Ao ver um quadro, podemos ver apenas traços de tinta em uma tela, ou em um concerto, ouvir apenas sons. E está tudo bem. No entanto, a experiência se tornará muito mais rica à medida que tivermos mais contexto sobre a obra em questão. Em última análise, se as pessoas ouvem ou não um determinado género musical dependerá de muitos fatores, mas sem dúvida a educação é um dos principais. Felizmente, a música que se pode ouvir atualmente é bastante variada. Há de tudo e para todos.

AR: Na música portuguesa, qual é o teu compositor, género ou período musical favorito?

JG: Falta-me muito por conhecer sobre a música erudita em Portugal e os seus compositores, no entanto, como contrabaixista, tive a oportunidade de tocar obras de alguns compositores portugueses como Marcos Portugal, Joly Braga Santos e António Victorino Almeida. Quanto à música popular portuguesa. Gosto muito do trabalho de António Zambujo, que combina o fado e outros géneros musicais nas suas composições, criando uma fusão única e emocionante. Além disso, interessa-me explorar mais a rica tradição do fado português e dos seus expoentes, como Amália Rodrigues, Carlos do Carmo ou Alfredo Marceneiro, para aprofundar o conhecimento da música popular portuguesa e as suas raízes históricas e culturais.

AR: Como foi a sua chegada a Portugal? Foi difícil a adaptação ou a música aproxima mesmo os povos?

JG: A chegada a Portugal foi um momento decisivo na minha vida, já que implicou deixar a minha zona de conforto e tudo o que conhecia para aventurar-me num outro continente. Depois de terminar o meu Mestrado em Berklee Valencia em 2015, decidi ficar na Europa e enviei o meu currículo para muitos lugares. Finalmente, a Orquestra do Norte deu-me a oportunidade de trabalhar com eles na bela cidade de Amarante. Apesar de não saber nada de português naquela altura, as pessoas em Amarante foram muito amáveis e prestáveis. Ajudaram-me a encontrar um apartamento em apenas três dias, o que é uma verdadeira proeza nessa cidade. No que diz respeito à adaptação, a música foi um fator chave para a minha integração. Graças a ela, conheci muitas pessoas e lugares interessantes em Portugal.

AR: Trabalhou na Orquestra do Norte e agora na Zana Batuta. Como foram / está a ser esta nova experiência?

JG: A minha experiência na Orquestra do Norte foi um período valioso de aprendizagem e crescimento pessoal. Trabalhar em uma orquestra local com menos de 40 músicos, depois de ter tocado na Orquestra Sinfónica Simón Bolívar da Venezuela, com mais de 150 músicos e uma trajetória internacional reconhecida, foi definitivamente um contraste importante. No entanto, isso me permitiu valorizar ainda mais o que vivi no meu país e aprender a adaptar-me a um novo ambiente e dinâmica musical. Desde então, tenho explorado novas oportunidades e abordagens na minha carreira musical. Recentemente, decidi concentrar-me na direção de orquestra, o que me levou à minha posição atual como Maestro titular da orquestra Zana Batuta em Sesimbra. Essa experiência tem sido muito enriquecedora e sou grato à organização por me ter dado a oportunidade de liderar e dirigir um conjunto musical. Estou animado para continuar explorando novas formas de fazer música.

AR: Como olhas para o futuro?

JG: Com otimismo e alegria, como músico e ser humano, meu desejo é continuar crescendo e evoluindo, tanto pessoal quanto profissionalmente. Tenho muitos projetos e objetivos em minha carreira musical, mas estou ciente dos desafios que posso encontrar no caminho, não apenas a nível individual, mas também coletivo, como planeta. Um exemplo disso foi a recente pandemia. O futuro é incerto, mas cheio de possibilidades e desafios. Dependerá de cada um de nós se queremos construir um mundo distópico ou um mundo onde nossas utopias se tornem realidade. No que me diz respeito, estou disposto a continuar trabalhando com paixão, humildade e compromisso para contribuir para esse mundo melhor que todos desejamos. Vivemos tempos interessantes e de rápidas mudanças em que nossa capacidade de adaptação será fundamental. Portanto, como o bambu, devemos ser firmes, mas flexíveis.

 

Site do Maestro: Double Bass Player & Conductor (juanguevara.com)

Noticias Relacionadas