Dar a conhecer, crítica e artisticamente, os projetos de organizações armadas em Portugal que atuaram antes e após a revolução de 1974. Esta é a premissa de Luta Armada, peça de teatro documental multidisciplinar da companhia Hotel Europa, que assinala os 50 anos do 25 de Abril e dá continuidade ao trabalho de investigação do grupo sobre a história recente do país.
Apresentada no âmbito do ciclo Abril Abriu do Teatro Nacional D. Maria II, a peça estreou esta quinta-feira (4) e estará em cena até ao dia 14 deste mês no Espaço da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, em Marvila, Lisboa. Depois disso, passa já em maio (15 e 16) pelo FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, no Porto, e depois pelo Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra (18), rumando no final do ano a Pombal e Paredes de Coura.
O trabalho em cena apresenta as ações de grupos que recorreram à violência armada como forma de luta antes e pós-revolução. Por um lado, os movimentos antifascistas pré-Abril (LUAR, ARA e Brigadas Revolucionárias) e, por outro, os grupos contrarrevolucionários de extrema-direita (ELP, MDLP e Maria da Fonte), os movimentos independentistas dos Açores e da Madeira (FLA e FLAMA) e as FP-25, que lutaram na década de 1980 para repor o socialismo.
“Os primeiros tentavam abanar o regime ditatorial e tinham como máxima principal não causar vítimas, enquanto os segundos não estavam contentes com o rumo da revolução. Estes últimos já eram mais violentos, pondo bombas e causando muitas vítimas mortais”, explica ao EL TRAPEZIO a atriz Mara Nunes, integrante do elenco também composto por André Amálio (criador da peça ao lado de Teresa Havlíčková), Mariana Sardinha, Maurícia Barreira Neves, Mbalango e Paulo Quedas.
Apesar das diferenças apontadas, a companhia não se propõe a julgar a ação de nenhum grupo, optando por um trabalho descritivo e para memória futura. “A peça coloca a questão de como podemos contar a nossa história de forma mais inteira e aprender com ela para que, no contexto histórico de hoje, não deixemos erros do passado voltarem a acontecer”, diz Mara Nunes.
Recordar para não esquecer
Na ficha técnica deste projeto encontramos também Edison Otero, colombiano, radicado em Lisboa e responsável pela criação musical da peça. “Preocupei-me muito com o contexto. Começamos a peça com uma bossa nova, tropical, a contextualizar aquele assalto [ao paquete Santa Maria, que chegou ao Brasil]. Aí somos bastante literais”, salienta o músico, “mas também conseguimos ser artificiosos e contemporâneos no tratamento do som”, referindo-se, por exemplo, ao uso de instrumentos como a mbira. “No final da peça, passamos também pelo punk rock ao estilo das Pussy Riot, inspirando-nos na imagem delas”, acrescenta.
Um trabalho com tanto de experimental como de desafiante, conta-nos Otero, que reviveu durante o processo a convivência próxima com a violência armada. “Eu conheço muito bem o contexto de luta armada, tanto pela parte das guerrilhas de extrema-esquerda como de extrema-direita. Inclusive na aldeia onde nasci, San Vicente de Chucurí”, assinala, “nasceu uma das maiores guerrilhas da América Latina e, atualmente, a maior na Colômbia: o ELN”.
Sem querer entrar em detalhes, “porque são coisas tristes e traumatizantes”, o músico fala-nos de algumas lembranças desse período em que a guerrilha “era a autoridade”, ainda que ilegal. “Lembro-me da violência extrema quando o Estado e o Exército começaram a militarização destes lugares, criando exércitos paramilitares, e testemunhei também a passagem do poder da extrema-esquerda para a extrema-direita”.
Apesar da negatividade associada a esta experiência, Edison Otero mostra-se feliz por poder “tirar proveito dela e plasmá-la na música” que cria, referindo-se à sua atividade como “um escape” na infância. “Comecei a tocar trompete na banda filarmónica da minha aldeia, enquanto muitos dos meus amigos foram parar às guerrilhas, seduzidos pelo contexto de guerra, das armas e das drogas.” Algo muito menos romântico e prestigiante na realidade “do que fazem ver os ‘narcofilmes’ e ‘narconovelas’ de hoje”, comenta ainda.
A revolução de Abril foi pacífica, mas nem tanto
De toda a experiência, fica uma certeza. “Sou contra o uso de qualquer tipo de armas e tenho as minhas crenças sobre o respeito pela vida do outro, algo que questiono em qualquer revolução”, afirma Otero, destacando a surpresa que teve ao conhecer a fundo a revolução de 1974. “Nas entrevistas que fizemos a vários militantes [das organizações armadas portuguesas], fiquei admirado com a visão de alguns destes grupos de que não devia haver mortes. Admiro imenso que uma pessoa que tenha armas na mão não queira causar baixas humanas”.
Não podendo deixar de comparar com o cenário de guerra que viveu, considera a revolução portuguesa “extremamente pacífica”, atribuindo essa característica aos “movimentos sociais e políticos importantes e ao sentimento generalizado de mudança”. Ainda assim, reconhece que o contexto da Guerra Colonial despoletou “em grande parte” a transformação e manchou a imagem do “dia inicial, inteiro e limpo” (citando Sophia de Mello Breyner) que muita gente tem da revolução.
“Essa parte também não se pode esquecer”, conclui. “Muitos dos movimentos libertários nasceram depois da ação de outras pessoas que deram a vida pela liberdade”.
Créditos das fotografias: Filipe Ferreira