Brasil, Espanha e o futuro do tratado da Antártida

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                                                                                    “Soberana polar, alvinegra adaga,

                                                                                    Nobre guardiã de gélidos tesouros,

                                                                                    ibitinga pitonisa de agouros,

                                                                                    Prima dona da procela e da vaga.

                                                                                     Tomai da lira e entoai a saga

                                                                                     Dos sucessos heróicos e duradouros

                                                                                     Com que, pois, vos cobriu como louros

                                                                                      Pindorama, gentil mãe que afaga”.

                                                 Do Poema “Hino à Antartida Brasileira”, de Jarbas de Sá Perestrello

 

A entrada em vigor do tratado da Antártida completou dia 23 de junho 60 anos. E, ainda que muitos dos convidados para a festa de aniversário estivessem ansiosos por fatiar o bolo (cada vez menos gelado, diga-se de passagem), os fominhas ficaram a ver navios (quebra-gelo, obviamente).

Explico: do dia 14 ao dia 24 de junho deste ano reuniram-se na França 54 signatários do Protocolo de Madri para discutir o futuro do continente. Mesmo que em tese o supracitado convênio tenha transformado a Antártida num condomínio internacional, livre de partilhas e desavenças militares, na prática outra realidade se avizinha.

Inúmeras nações, quase todas consideravelmente distantes dos gelos meridionais, vem construindo estruturas cujo uso, aparentemente, vai além das pesquisas científicas e do turismo convencional. As atividades russas e chinesas na Antártica, em particular, parecem estar sendo planejadas para garantir que esses dois países não sejam deixados de fora caso haja qualquer oportunidade possível na Antártica no futuro.

De fato, custa-nos imaginar que, num planeta onde rapidamente escasseiam a água potável, as fontes de alimento e metais raros, um reservatório natural de tais recursos, como o é a Antártida, permaneça intocado até o meio do século.

Igualmente desagradável (e de certa forma dolorosa) é a perspectiva de que dois outros países, como o Brasil e a Espanha, insistam em seu posicionamento negligente quanto aos seus interesses no pólo sul – o primeiro pela proximidade e o segundo pela glória de ser a terra natal de um dos prováveis candidatos a descobridor do continente, Gabriel Castilla.

Embora em abril deste ano o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, tenha cometido a gafe (ou talvez o ato falho) de considerar a Antártida como território brasileiro, não há reivindicações oficiais brasileiras sobre quaisquer terras desse continente.

O Brasil aderiu ao Tratado da Antártica em 1975. A partir de 1976, inspirados por um princípio já então adotado para definir o mar territorial dos países com terras acima do Círculo Polar Artico, a professora universitária Therezinha de Castro e o deputado Euripedes Cardoso de Menezes passaram a defender a Teoria da Defrontação (a primeira tentativa teórica séria de reivindicar um setor da Antártida para o Brasil). Com a criação do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR), o país iniciou suas atividades naquele continente em 1982, quando realizou a primeira Operação Antártica (OPERANTAR I). O Brasil mantém apenas uma base na Antártida, a Comandante Ferraz, na ilha do rei Jorge.

A Espanha, por sua vez, tem a seu favor o robusto acervo de provas de que foi um palenciano o descobridor do continente branco. Gabriel de Castilla, que em 1603 combatia corsários no litoral do Chile, viu-se forçado por uma tempestade a deixar sua rota, que, empurrando-o para o sudeste, o levou às cercanias do arquipélago das Shetland do Sul. Hoje, a matriarca ibérica mantém duas bases antárticas: Juan Carlos I (na ilha Livingstone) e Gabriel de Castilla (na ilha Decepção).

Mas os números atualizados ainda impingem uma derrota acachapante às glórias de outrora: diante das 9 bases russas, 5 americanas e 4 chinesas, a presença brasileira e espanhola na Antártida continua demasiado tímida. E, quando analisamos a toponímia desse continente, a conclusão incômoda é a de que, num futuro próximo, mais da metade da Antártida poderá tornar-se  quintal de nações anglófonas (Reino Unido, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia).

Nem tudo é pessimismo, contudo. Chilenos e argentinos, nuestros Hermanos em iberidad, vem demonstrando um corajoso protagonismo em questões polares. Desde o século XIX ambos realizam expedições e constroem vilarejos na Antártida, ao mesmo tempo que incluem nos mapas escolares imensos nacos da península antártica como parte de seus territórios nacionais. Talvez a diferença entre brasileiros, espanhóis, chilenos e argentinos, em relação às suas respectivas políticas antárticas, seja exatamente essa: a excessiva timidez dos brazucas e espanhóis, por um lado, e a apaixonada agressividade dos chilotes e argentinos, por outro.

De uma forma ou de outra, os ibéricos encontram-se, desde já, diante de um angustiante dilema. Proceder como russos e chineses, signatários rebeldes do Protocolo de Madrid, cujos preparativos para anexar imensas fatias (de ambos os polos) nem eles mesmos ocultam; ou aguardar o fatídico ano de 2048, com toda fleuma e esperança que temos manifestado até agora, na pueril expectativa de que ainda haverá migalhas disponíveis sobre a mesa quando o Protocolo de Madrid expirar.

Certamente que, além do solo antártico em si, ainda inadequado para construção civil e para a maior parte das atividades econômicas realizadas alhures, por estar o solo quase todo coberto por geleiras, resta o filão da biodiversidade (e, consequentemente, da biotecnologia).

No campo da alimentação, por exemplo, a biologia antártica é uma generosa provedora de ingredientes. Em 2008, os cientistas argentinos do Projeto Genoma Branco conseguiram decifrar o genoma da bactéria Bizionia argentinensis, o primeiro organismo cujo genoma foi completamente sequenciado na Argentina. O mais interessante sobre essas formas de vida é que elas têm um metabolismo extraordinário que pode ter aplicações biotecnológicas. Por exemplo, para fazer leite sem lactose, muitos litros de leite precisam ser aquecidos, mas se fossem utilizadas enzimas desses organismos extremófilos, não seria necessário submeter o substrato ao calor, porque essas enzimas trabalham em baixas temperaturas.

E em setembro do ano passado, alguns cientistas brasileiros descobriram na Antártida uma bactéria produtora de compostos capazes de inibir o desenvolvimento de glioma (câncer que ocorre no cérebro e na medula espinal), tumores na mama e no pulmão.

Ainda que essas descobertas não exijam a ocupação militar de amplas extensões de terra antártica, sem dúvida que o valioso potencial de seus resultados atrairá os olhares cobiçosos de potências industriais oriundas de outras paragens.

Além disso, a conclusão do recente encontro realizado na França é a de que a crise climática está empurrando esta região do pólo sul para limiares críticos, o que poderia gerar uma reação em cascata de repercussões globais negativas para a biodiversidade e a humanidade como um todo.

Embora o Tratado da Antártida tenha sido capaz de responder com sucesso a uma série de desafios, as circunstâncias são radicalmente diferentes na década de 2020 em comparação com as de 1950 e 1960. A Antártida está muito mais acessível, em parte devido à tecnologia, mas também às mudanças climáticas.

O Brasil e a Espanha, mesmo que já tenham muitas terras em busca de povoadores, poderão num futuro próximo precisar de outros recursos (água potável, por exemplo), que a Antártida comporta em abundância. Por enquanto, um aumento do número de bases científicas no interior do continente pode já ser suficiente. Nas relações internacionais, bem como na escala micro das relações interpessoais, não há poder sem presença. Vistamos, pois, nossos agasalhos e equipamentos de frio, e façamo-nos mais presentes na última fronteira da Terra.

Danilo Arantes

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