Espigueiros: um património material e imaterial por (re)conhecer

A candidatura destas estruturas a Património da UNESCO continua a ser preparada por investigadores e associações de Portugal e Espanha. A próxima reunião do grupo realiza-se em outubro, nas Astúrias

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Passeando pelas zonas rurais e montanhosas da Península Ibérica, sobretudo nas margens verdejantes dos rios do Noroeste, a natureza espanta-nos com as cores e formas que toma. A presença humana, muitas vezes, faz-se apenas notar pelos socalcos desenhados desde há muito tempo e por algumas casas que vão pontilhando as encostas das montanhas. Até que, se olharmos a paisagem com atenção, podemos ter a sorte de avistar algumas construções mais inusitadas. Quem não as conhece, poderá pensar que são monumentos funerários ou capelinhas, quando, realmente, a sua função é outra.

Claro está, são espigueiros ou canastros, como são mais conhecidos em Portugal. Ou então hórreos ou paneras, para quem vive do outro lado da Raia. Tal como os chapéus, existem muitos e de vários tipos, por isso o mais prudente até é chamar-lhes celeiros elevados. Mas o que são exatamente e para que servem?

“São estruturas para armazenar produtos agrícolas, construídas a um nível elevado do solo para os proteger da humidade e dos roedores”, resume Fernando Barros, arquiteto e investigador na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Feitas em madeira ou pedra, segundo a tradição local, têm geralmente umas estreitas aberturas laterais para arejar o interior e torná-lo “fresco e seco”. O que permite às colheitas “resistirem melhor” ao clima das regiões húmidas, onde estas estruturas predominam. Regiões essas associadas também a uma maior “produtividade agrícola” e ao “cultivo do milho”, como são exemplo, no caso ibérico, o Minho, o Douro Litoral, a Beira Litoral Norte e, ainda, a Galiza, as Astúrias, Cantábria e o País Vasco.

Outra curiosidade sobre estas construções é a sua propriedade. Tradicionalmente, diz o investigador, os espigueiros privados são mais dispersos no território e têm maior presença em “zonas de vale”, onde os “lavradores abastados” tinham as suas quintas, cada uma com um ou mais exemplares. Por contraste, era nas “aldeias de montanha”, com uma maior concentração de casas, onde se concentravam também os espigueiros que serviam toda a comunidade, geralmente construídos em zonas “com maior exposição ao Sol e ao vento”. Assim, explica, “tinham a garantia de ser o melhor local para conservar [as colheitas] e facilitava-se os trabalhos coletivos que existiam”.

Mas se os espigueiros passaram a ser associados à reserva do milho, Barros atesta que nem sempre foi assim. “Os primeiros espigueiros que conhecemos, com a mesma forma daqueles que preservamos atualmente, chegam-nos da Idade Média, quando se plantava sobretudo o trigo e o centeio”. Foi o milho, no entanto, “vindo das Américas” nos séculos XVI e XVII e “mais produtivo do que as culturas que existiam na altura”, a abrir as portas à “revolução” no mundo agrícola e à disseminação dos espigueiros (ao estilo medieval) um pouco por toda a Península.

Atualmente, difícil será encontrar um espigueiro que conserve o seu uso original. A maioria destas construções estará abandonada, mas muitos passaram a ter um uso “cultural e turístico”, sendo visitados e apresentados como “elementos simbólicos” das aldeias que os preservam. Podem ainda servir como “arrecadação de lenha, bicicletas” e muitas outras coisas: basta a imaginação para lhes dar novas funções. “Seriam estruturas muito interessantes para secar roupa”, afirma o investigador, “ou então para esconder máquinas de ar condicionado, por exemplo”.

Um património construído que “é também imaterial”

Além de investigar arquitetura tradicional, Fernando Barros faz parte de um grupo ibérico de académicos e associações com interesse pela defesa e divulgação dos celeiros elevados. Mas não só. A rede Horrea (que significa “espigueiro” em latim) quer também candidatar estas estruturas à lista de Património Imaterial da UNESCO, por considerar não apenas a sua relevância arquitetónica e o “saber construtivo” aplicado, mas também a “simbologia imaterial” que carregam, desde as cruzes para pedir proteção divina à “prática comunitária” que representam.

Um trabalho conjunto “entre colegas” de Portugal e de várias regiões de Espanha que começou durante a pandemia em “reuniões não presenciais” para trocar conhecimentos e mapear os espigueiros, derivando posteriormente numa série de encontros físicos para discutir “o que cada território está a fazer para valorizar estas estruturas” e fazer visitas no terreno. Os dois últimos realizaram-se em Portugal: o primeiro em maio deste ano, no concelho de Arcos de Valdevez e proximidades, e o último na Universidade de Aveiro, no passado mês de julho. Já em outubro, entre os dias 2 e 4, terá lugar nas Astúrias o próximo (e quarto) encontro.

Para o grupo ainda informal, mas que espera formalizar-se como “associação internacional” neste próximo encontro, a prioridade está bem traçada. A classificação de todos os espigueiros como bens de interesse cultural é o primeiro passo “fundamental” para facilitar o caminho rumo ao reconhecimento da UNESCO. Algo que “já acontece na Galiza”, e que em outubro deverá ser também uma realidade “em toda a Espanha”, mas que ainda não se deu em Portugal. “Estamos agora a trabalhar com as Câmaras Municipais e Direções Regionais de Cultura para inventariar o património, apresentar-lhes o projeto e pedir apoios institucionais”, garante Barros.

“Queremos fazer uma candidatura internacional dos espigueiros a património da humanidade”, destaca, acrescentando que “qualquer país que tenha estas estruturas pode vê-las reconhecidas” como tal. O que incluiria países europeus como “a Suíça, Itália, Croácia, Eslovénia ou Turquia”, mas também países como o Brasil e a Venezuela, “pela ligação histórica que têm connosco [Portugal e Espanha]”, e ainda “Madagáscar ou Senegal” no continente africano.

A ideia está lançada e a colaboração ibérica avança “rápida” e de maneira “muito fácil”, admite o investigador, ciente do “longo caminho” que ainda têm pela frente. “Estamos todos ligados pelo mesmo objetivo e consideramos estes elementos como um valor a preservar e classificar, para além do gosto pessoal que temos”. Não deixa de assinalar, mesmo assim, as diferenças entre países “no âmbito da gestão administrativa do património”, que, indica, tem um “peso diferente” em Espanha pela maior “autonomia regional”. Mas o que conta realmente é convencer os poderes centrais. “São os Governos que têm de dar o aval a esta candidatura”, conclui.

Fotos: Fernando Cerqueira Barros, arquiteto.

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