O índio na Literatura Brasileira ou “Nos deram espelhos e vimos um mundo doente”

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Muito vem se falando sobre o desumano destino dos Yanomamis no Brasil. Não é pra menos. O mundo assiste estarrecido ao resultado da barbárie promovida em nome da ganância. O El País de 01/02/2023, em matéria sobre o assunto, estampa muito acertadamente o subtítulo “El resultado de los cuatro años de laboratorio de la extrema derecha en Brasil emerge en forma de cuerpos infantiles”.

Sobre a questão indígena não tenho conhecimento suficiente para traçar análise responsável. E digo isso em respeito a muita gente séria que sei que se dedica a este assunto. Eu, humildemente, me atenho à opinião geral: o fato é hediondo, indignante e nos faz perder o pouco de esperança que ainda poderíamos ter na raça humana, ou em boa parte dela.

Trago a discussão para a minha área, a Literatura, porque daí é possível sacar interessante material de reflexão sobre o tema. Claro está que, quando abordamos a Literatura, estamos abordando também história e sociedade. Esses campos caminham quase sempre de mãos dadas.

Desde seus inícios, a Literatura Brasileira escrita em português destaca a figura indígena. Nada mais natural; o índio é o brasileiro nativo e não há como falar de Brasil sem falar dos indígenas. No entanto, os próprios índios nunca foram produtores dessa literatura. Isso não significa que eles nunca tenham produzido literatura (a literatura é inata a qualquer civilização). Significa somente que nunca ninguém se interessou por ouvi-los, escrevê-los, imprimi-los e distribuí-los – esse cenário parece que, timidamente, vem melhorando agora pouco a pouco.

Caminha, Anchieta e Alencar

O tratamento dado aos índios pela Literatura variou e varia muito, de acordo com a época, a moda literária e a ideologia de cada autor. A lista de exemplos seria vastíssima. Aqui tentaremos, rapidamente, tocar em alguns dos pontos cruciais que podem demonstrar uma pincelada da visão dos literatos brasileiros – e das sociedades das quais faziam parte – acerca dos índios ao longo da história.

Pra começar, vejamos pequeno trecho da carta de Pero Vaz de Caminha a Dom Manuel I, rei de Portugal. Caminha era o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, que aportou no litoral brasileiro em 1500. Esse texto é considerado a certidão de nascimento do Brasil. Dos índios que encontrou na costa baiana, dizia:

“Eles porém contudo andam muito bem curados e muito limpos (…) porque os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão fremosos que não pode mais ser”.

Caminha destaca os aspectos físicos, como se de animais falasse. Isso sim: são animais limpos, gordos e formosos (se isso chamou a atenção de Caminha, imagino que os portugueses fossem o contrário: sujos, magros e feios, principalmente depois de meses cruzando o Atlântico). É inevitável não fazer a triste comparação com os Yanomamis de hoje, que talvez continuem limpos e inclusive formosos, mas gordos sabemos que não.

Já o padre José de Anchieta – espanhol de família paterna basca, nascido nas Ilhas Canárias e educado em Coimbra –, é um caso completamente diferente. Se Caminha contava com uma missão informativa, Anchieta foi um missionário jesuíta da Companhia de Jesus, destinado à catequização dos “selvagens”. Ainda estamos no século XVI, ou seja, todos os ibéricos que chegavam ao Brasil traziam consigo uma visão de mundo medieval e barroca.

Anchieta era poeta e dramaturgo de qualidade. Colocou seus dotes literários a serviço da conversão e da moralização dos nativos. Como os indígenas não compreenderiam, pelo menos no princípio, nem o português nem o espanhol, o padre aprendeu algo da língua tupi, que misturava com termos dos idiomas ibéricos. Nascia assim, pouco a pouco, a chamada Língua Geral, que foi largamente utilizada em boa parte do Brasil até os inícios do século XIX. São de José de Anchieta, por exemplo, os versos:

Ejorí, Santa Maria,

xe anáma rausubá!

Que se traduzem por:

Vem, Santa Maria,

protetora dos meus!

No entanto, o uso do nome “Santa Maria” não era o mais comum em Anchieta. Ele costumava buscar a transposição do vocabulário cristão aos equivalentes tupis. Assim, Deus é Tupã. Nossa Senhora é Tupansy (mãe de Tupã). O Reino de Deus é Tupãretama (terra de Tupã) e Igreja é Tupãóka (casa de Tupã). O fato de ter traduzido conceitos nativos para os correspondentes católicos parece demonstrar certa boa vontade de Anchieta com a cultura originária. Mas é importante não perder de vista a sempre presente, clara e assumida intenção catequizadora do jesuíta. Ou seja, ele penetrava na cultura do outro para, de certo modo, transformá-la. Não era respeito. Era uma estratégia.

Com José de Alencar, quase trezentos anos depois, vemos outro panorama, que tampouco será animador quanto ao respeito à cultura indígena. Já estamos no Romantismo brasileiro, século XIX. Alencar é considerado um dos melhores escritores dessa época. Dentre suas muitas obras, nos interessa comentar aqui algumas de sua fase conhecida como “indianista”.

Com o ideal do “bom-selvagem” na cabeça, Alencar comporia romances como O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Ao contrário do confronto entre índio e colonizador – que se poderia esperar –, o que vemos nestas obras é uma comunhão entre esses dois polos, um tanto forçada e antinatural, para não dizer subserviente do indígena em relação ao branco.

Em O Guarani, por exemplo, o índio Peri é escravo da branca Ceci (Cecília), a quem ama e venera, e também totalmente submisso ao pai de Ceci, o português Dom Antônio. Apesar de ser retratado como forte, belo e valente, Peri não chega a ser completamente digno até que Dom Antônio o batiza como cristão, ritual necessário para que, só então, Peri tenha os dotes suficientes para proteger Ceci. No livro, Peri se exalta de júbilo ante a possibilidade de ser batizado, o que realmente acaba acontecendo. O mesmo se observa com o índio Poti em Iracema, que receberá o nome cristão de Antônio Felipe Camarão. Ou seja, o bom-selvagem só é realmente bom uma vez convertido à fé cristã.

Mais uma vez, o índio é submetido. Em Alencar, a apologia ao colonizador é flagrante. Viola sobejamente a história do processo colonial, disponível para quem quiser ver em tantos e tantos documentos oficiais (de punho dos próprios portugueses) hoje em dia facilmente consultáveis pela internet ou, melhor ainda, em bibliotecas e arquivos públicos. José de Alencar continua sendo admirável por seu valor estético e histórico. Quanto ao tema ideológico, sua contribuição é mais do que questionável.

O índio para os Modernistas

Os Modernistas de 1922 viraram a cultura brasileira de pernas pro ar. A visão sobre o índio mudou, mas não cheguemos a conclusões apressadas. Em Macunaíma, de Mário de Andrade, por exemplo, o protagonista é radicalmente oposto à imagem do bom-selvagem. Na verdade, ele é o “herói sem nenhum caráter”, que tem como mote a expressão “Ai, que preguiça”. Ou seja, estamos ante outro estereótipo que nos acompanha até hoje.

É claro que o livro de Mário de Andrade tem um valor artístico inestimável, principalmente, no meu modo de ver, pelo uso rompedor da linguagem, alinhado às inovações das vanguardas literárias dessa época, mas com um bom toque nativo, no melhor estilo antropofágico. O conceito de antropofagia, aliás, perpassa toda a cultura brasileira desde então – de Jorge Amado a Gilberto Gil, de Glauber Rocha a Chico Science, de Paulo Leminski aos Paralamas do Sucesso.

Até podemos enxergar certa boa vontade dos Modernistas na revalorização da cultura indígena. De todo modo, é pouco. O índio continuaria a não ter voz própria, sendo mero personagem estereotipado.

Na senda da antropofagia cultural, temos ainda dois grandes nomes: Caetano Veloso e Renato Russo. O primeiro propõe uma profecia: depois de completamente exterminados, um índio descerá de uma estrela e revelará aos povos algo tão óbvio que nos parecerá surpreendente. O conteúdo dessa revelação Caetano não nos explicita (ele mesmo não sabe “dizer assim de um modo explícito”), mas eu tenho cá pra mim que seria algo na linha do respeito à natureza e da vida simples. Quer dizer, o índio “surpreenderá a todos não por ser exótico”, mas sim por dizer o que já sabemos, ainda que muitas vezes essa sabedoria esteja oculta.

Em Renato Russo, na célebre letra de “Índios”, vemos sua louvável tentativa de dar voz aos indígenas, escrevendo em primeira pessoa – assumindo o sujeito poético de um índio – um desabafo doloroso. É interessante imaginar que muitos trechos da letra de Russo poderiam ser a mensagem oculta do índio de Caetano Veloso:

“Quem me dera ao menos uma vez provar que quem tem mais do que precisa ter quase sempre se convence de que não tem o bastante. (…). Quem me dera ao menos uma vez que o mais simples fosse visto como o mais importante”.

E arremata:

QUEM ME DERA AO MENOS UMA VEZ NÃO SER ATACADO POR SER INOCENTE.

 

Sérgio Massucci Calderaro

Referência bibliográfica: Dialética da Colonização, de Alfredo Bosi

 

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