Carlos Cano e a tristeza luso-andaluza

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Quando Carlos Canos (Granada, 1946-2000) lançava os seus sons para o ar com poucos mais meios que a sua guitarra, eu era um adolescente inquieto que acabava de chegar a universidade. Recordo muito bem de um concerto, um dos últimos, do “Manifiesto Canción del Sur”, grupo a que pertencia Cano, no auditório da Faculdade de Ciências da Universidade de Granada em 1974 ou 75. Um grupo de rapsódias promovidas pelo singular lorquiano Juan de Loxa, a partir das ondas de rádio do seu programa “Poesia 70”, onde expressou por meios mais explícitos o flamenco e outros meios mais populares existentes ao sul. Aqueles foram os dias triunfantes em que essas rapsódias ou cantores e compositores atraíram um grande público jovem.

Nunca tive uma relação directa com Carlos Cano. Fiquei sabendo dos seus sucessos pela imprensa. Em certa ocasião li algumas declarações suas judiciosas, quando vivia em Cádis, no meu particular exílio interior, sobre um conceito perdido que passou a designar o povo granadino: o “malafollá”. Ele caracterizou isso como uma amargura, uma espécie de humor negro, que o lojista representaria na frente do cliente com uma certa amargura: “Você não quer vir comprar?” Nesta transcrição encontrou o contraponto inteligente e humorístico à vulgar “graça andaluza”.

Carlos Cano cantou com sinceridade e emoção a bandeira verde e branca, símbolo do irredentismo blasinfantiano, ocasião em que os americanos invadiram a Ilha de Granada, no Caribe, em 1983, por terem um regime marxista-leninista. Pensou que estivessem ocupando a seu própria Granada para a Andaluzia, o que fez com que rapidamente viessem em sua defesa. O tom da voz de Carlos Cano fundia-se com a causa andaluza, enquanto o movimento político e cultural que Blas Infante iluminara e cozinhava na sua corrupção e traições. O primeiro na própria Granada, em que, tendo vencido os andaluzes nas primeiras eleições autárquicas democráticas, a direcção do movimento a mudou para um prato mais apetitoso, segundo eles, o sevilhano. Essa mudança, junto com o pequeno teatro que seus dirigentes montaram com a UCD nas Cortes para apostar no acesso à autonomia política pela porta falsa, mergulharam para sempre o andaluzismo no abismo. Uma consequência directa foi o seu desaparecimento político prático até ao dia de hoje. Apesar disso, Carlos Cano, sem desanimar, representava um verdadeiro ícone da Andaluzia. Nas festas do verão da cidade, até duplos em segunda mão, cantavam a “blanquiverde”, e sobretudo “Maria, a Portuguesa”.

Deu saída musical e poética a sua tristeza andaluza. Cano era um optimista triste, quero pensar, um habitante de uma Granada que possui um “passeio dos tristes”, aos pés de Alhambra, que segundo algumas versões seria um lugar de despedida dos mortos quando subiam ao cemitério da cidade e segundo outros este era o lugar aonde iam meditar os juízes sobre as suas sentenças. Esta tristeza encaixar-se-ia no que afirmava o professor Miguel Ángel García em seu livro “Melancolía vertebrada”, que a coloca como uma opção persistente e não menos tópica opção antitética à alegre Andaluzia que passaria do modernismo à vanguarda. “Amada Alhambra! Como você expressa bem a solidão do coração, a doce nostalgia do ideal”, escreveu Nicolás María López, amigo de Ángel Ganivet, em 1898, no seu livro “Tristeza andaluza”. Aspiração ao transcendente versus superficial, à falsa alegria que pesa sobre a imagem andaluza. O Flamenco não conseguiu transmitir esse sentimento, mas Cano encontrou-o no fado com a sua saudade particular. A canção fadista, ligada à canção espanhola já reivindicada pelos integrantes do Manifesto e da “Poesia 70”, foi a feliz descoberta de Carlos Cano.

O Fado, segundo a opinião que Pinto de Carvalho expôs no livro “História do fado”, publicado em 1906, não teria nada a ver com as cadências árabes que poderíamos facilmente ser tentados a associar, mas com a imensa e regressiva visão do oceano. “Para nós, o fado tem uma origem marítima, uma origem que se vislumbra não no seu ritmo ondulado como nos movimentos cadenciados da vaga, balançando de bombordo a estibordo os navios que passavam sobre a toalha líquida florida de fosforescências fugitivas ou num vai-e-vem de ondas batendo no costado, ofensivas no arlar do Grande Azul desfigurado na sua túnica franjada de rebordos espumosos, tristes como os lamentos flutuantes do Atlântico que convulsionava glaucoso e com babas de prata, saudação nostálgica e indefinida da pátria ausente”. A extrema melancolia da perda sem resignação destila o fado, portanto.

O tema fronteiriço “Maria, a Portuguesa”, sempre associei a paixão andaluza e iberista de Carlos Cano. Há poucos anos o “El Mundo e o “El Español” descobriram em relatos separados, de Fermín Cabanillas e López Frías respectivamente, e, anteriormente, numa entrevista com Ignacio Camacho, que esta Maria era realmente uma prostituta e contrabandista de nome Aurora e que estava viajando, como na canção “de Ayamonte a Villareal”, entre os dois países, e cujo provável amante, com ou sem amor, fora morto pela guarda costeira do Guadiana enquanto transportava caixas de marisco. Este facto levou a uma revolta em Ayamonte, onde veículos com matrícula portuguesa foram atirados ao rio pela população enfurecida. Esta história de amor misterioso na fronteira do Guadiana converteu-se assim num conflito social como prova de generosidade e sentimento. Ao mesmo tempo, segundo conta Tono Cano, em “SecretOlivo”, Carlos Cano após ter comprado, nos anos oitenta, um disco de Amália Rodrigues, a rainha do fado, ouvia-o obsessivamente em casa, inalando profundamente a saudade que destilava. O sucesso da música levou Carlos Cano a cantá-la. Mais tarde, quando já fazia sucesso, cantaría em conjunto com a própria Amália Rodrigues, identificando-se com a diva portuguesa, ícone musical da revolução dos cravos. A conjunção de ambas as coisas, tema e motivo musical, se fundiram em “Maria, a Portuguesa”.

Tudo isso levou-me a pensar no que une os andaluzes aos portugueses. Se o tema da Raia foi o maior da carreira de Carlos Cano, com a sua voz rouca e singular, onde a figura do cantor-compositor já se tornava invisível como numa rapsódia da força dos levantes, como diria G. Didi-Huberman. Agora iluminava-nos novamente. Nas novas realidades geoestratégicas, Portugal e a Andaluzia, bilateralmente, têm muito a partilhar, incluindo a tristeza singular, veiculada pela literatura, a canção andaluza e o fado. Sempre tive para mim que Carlos Cano foi o mais honesto do lote de músicos brilhantes que Granada deu na Transição. Quando ele morreu, tão jovem, senti uma tristeza profunda, um sentimento que talvez eu não tenha com outros músicos mais complacentes, como se aqueles anseios juvenis de redenção que eu havia sentido no concerto longínquo, de 74 ou 75, do “Manifiesto Canción del Sur”, justamente no momento em que Portugal ocupava as primeiras páginas da imprensa com a marcha da sua revolução democrática.

 

José Antonio González Alcantud é catedrático de antropologia social da Universidade de Granada e académico correspondiente da Real Academia de Ciencias Morales y Políticas de Espanha. Premio Giuseppe Cocchiara 2019 aos estudos antropológicos

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