O português é o idioma da ginga?

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Existem idiomas mais ou menos próprios para esta ou aquela manifestação artística? O inglês é melhor para o rock? O espanhol é melhor para o flamenco? O português é melhor para o samba? Neste artigo tecemos algumas considerações sobre essa questão.

 

Antes de começar, façamos esclarecimentos acerca do termo “ginga” para os leitores hispanofalantes do EL TRAPEZIO, que são muitos. “Ginga” pode ser algo como ritmo, balanço, “meneo”, “swing”. Gingar poderia ser traduzido, em muitas situações, como “anadear”.

Quando eu era adolescente, nos anos oitenta em São Paulo, muitos tínhamos bandas de rock entre amigos. Era comum naquele então ouvir dizer que o inglês era o melhor idioma para se compor uma canção de rock and roll. “Em português fica estranho”, diziam. De todo modo, alguns como eu insistiam em fazer rock na língua pátria. Aos poucos, foram surgindo no cenário brasileiro provas de que o rock poderia ser feito em português sem nenhum problema e com resultados notáveis – temos aí os bons exemplos de Renato Russo, Cazuza e Herbert Vianna.

Mas a questão permaneceu: existem idiomas determinados que casam melhor com este ou aquele tipo de atividade, seja musical, poética ou intelectual? Caetano Veloso diz, na canção Língua, que “está provado que só é possível filosofar em alemão”. Será verdade? Nesse caso, era clara a intenção de ironia do compositor baiano. É óbvio que existem muitos filósofos que escrevem em outros idiomas e muitos roqueiros que compõem em miríades de línguas que não somente o inglês.

O mesmo absurdo seria afirmar que a bossa-nova só pode ser cantada em português. Pura balela. Basta ouvir o estadunidense Michael Franks ou o francês Henri Salvador para comprovar a beleza que pode alcançar uma bossa-nova em inglês ou francês. Além do mais, gente de peso como Sting e Frank Sinatra fizeram suas versões em inglês de clássicos de Tom Jobim com resultados esteticamente irretocáveis. Se fica mais “bonito” neste ou naquele idioma, isso já é uma questão de gosto pessoal.

Para mim, portanto, parece claro que todos os idiomas estão propensos a desenvolver seus potenciais léxicos, sintáticos, fonéticos e melódicos para qualquer tipo de manifestação. A qualidade do resultado dependeria pura e simplesmente da habilidade do artista ou do intelectual em manejar sua ferramenta idiomática. Assim, poderíamos ter bons rocks em português e boas bossas-novas em inglês, sem nenhum problema.

No entanto, gostaria de comentar algumas particularidades do português – especialmente em sua variante brasileira – e sua relação com a música.

 

O português numa caixinha de fósforos

É interessante observar que os idiomas, naturalmente, procedem, cada qual a sua maneira, a recortes fonéticos. Um lusofalante não pronuncia a “zeta” castelhana ou o duplo “LL” espanhol. Ao mesmo tempo, um hispanofalante não pronuncia o “zê” português ou o nasalizado “ão”. Os aparelhos fonadores de um lusofalante e de um hispanofalante nascem com as mesmas possibilidades. Organicamente, eles são iguais. Mas cada idioma pratica a sua seleção e um indivíduo nascido, por exemplo, em Madri não desenvolverá as habilidades de pronúncia do “ão”, já que o idioma da comunidade da qual faz parte não utiliza esse som em sua comunicação. Trata-se de escolhas fonéticas feitas a partir do desenvolvimento histórico de cada língua, campo no qual não nos cabe aqui adentrar.

O português é um idioma europeu que, antes mesmo de chegar ao Brasil, já apresentava uma feição bastante complexa em termos de substratos, superestratos e adstratos. Só para citar de passagem, no português europeu convivem o latim, o galego, o grego, o ibérico, o celta e o árabe, entre outros. A expansão marítima de Portugal enriqueceu ainda mais esse tecido linguístico. O português utiliza palavras de origens tão díspares como o mandarim e o tupi, como, por exemplo, “chá” ou “amendoim”, palavras inexistentes até mesmo em línguas próximas como o galego ou o espanhol.

No Brasil, foi imensa a contribuição de outros idiomas, tanto os indígenas nativos quanto os africanos levados à força àquelas terras. Não somente o léxico, mas também a fonética, passou por transformações de calado considerável. Algumas particularidades nos chamam a atenção.

Em grande parte do Brasil, a letra “T” antes da letra “I” ou antes da letra “E” (nos casos em que essa passa a ter o som de “I”) adquire um som muito semelhante ao “CH” espanhol. Assim, a palavra “tomate”, pronunciada em português brasileiro, soaria a um espanhol como “tomachi”. O mesmo acontece com a pronúncia da letra “D”, que adquire um som difícil de se descrever em espanhol quando pronunciada antes da letra “I” (ou da letra “E” com som de “I”). Por exemplo, a palavra “dia”, pronunciada por um brasileiro, soaria a um espanhol como algo parecido a “dyia” (aqui, por se tratar de um artigo de cunho jornalístico e não acadêmico, não estamos utilizando os signos do alfabeto fonético internacional).

Sigamos, pois: a partir desse pequeno fragmento de informação fonética, é possível imaginar como soaria a frase “qual é o pente que te penteia” (em espanhol, “cuál es el peine que te peina”) presente no samba Nega do cabelo duro, do jornalista e compositor brasileiro David Nasser. Se, mais do que imaginar, o leitor quiser ouvi-la, sugiro este link, com a versão de Astrud Gilberto:

A sucessão de fonemas em “qual é o pente que te penteia” nos remete ao som de um chocalho, um “sonajero”, um pandeiro ou, ainda mais especificamente, a uma caixinha de fósforos, “instrumento” de percussão muito comum nas rodas de samba informais em bares e botecos de todo o Brasil.

Exemplos de aliteração como esse pululam em todo o cancioneiro nacional brasileiro. Muito dessa magia se deve à particular fonética da língua portuguesa. Poderíamos aqui citar ainda trechos sacados do mestre Chico Buarque, como o genial fragmento da canção Biscate “Quem que te mandou tomar conhaque com o tíquete que te dei pro leite?” (em espanhol, “¿Qiuén te mandó tomar coñac con el vale que te di para leche?”) ou o caso clássico da canção Januária, moça tão encantadora que “até o mar faz maré cheia pra chegar mais perto dela” (em espanhol, “hasta el mar sube la marea para estar cerca de ella”), na qual o compositor faz uso do “CH” português para simular o barulho das ondas.

Para seu deleite, me vejo obrigado a deixar aqui também os links para essas duas pérolas. O primeiro deles, Biscate, com Chico Buarque e Gal Costa; o segundo, Januária, com Chico.

Cervantes já observava, séculos atrás, que “o português é um espanhol sem ossos”. Essa afirmação se refere claramente à fonética. Realmente, o português, por sua grande variedade de sons, oferece ao ouvinte uma linha melódica ondulada, onde a nasalização se combina aos diversos fonemas “chiados”, aos profusos diminutivos e outras particularidades fonéticas. Curiosamente, quando pensamos no idioma “sem ossos” comentado por Cervantes, isso nos remete a algo brando, mole, de articulação muito mais maleável quando comparada à articulação de um idioma mais “duro”, como poderiam ser o espanhol, o inglês ou o alemão.

Não me arriscarei aqui a concluir categoricamente que o português é o idioma da ginga, mas tenho cá pra mim a firme convicção de que a variedade e o tipo de sons proporcionados pela língua portuguesa se prestam perfeitamente ao remelexo e ao balançar das cadeiras, típicos do samba, da bossa e do pagode.

Nesse sentido, estudar português é quase como aprender a ter um instrumento de percussão natural dentro de seu aparelho fonador. Para finalizar, desafio o amigo leitor hispanofalante a experimentar essa sensação pronunciando em voz alta “qual é o penchi qui chi penteia”. ¿Qué tal te ha salido?

 

Sérgio Massucci Calderaro

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