Conhecer um idioma pluricêntrico é ter acesso aos sentimentos de várias partes do mundo. Neste artigo, fazemos uma breve análise comparativa entre línguas, considerando o fator de alcance geográfico como parâmetro para a compreensão de diferentes realidades humanas.
Entre os maiores idiomas do mundo em número de falantes, podemos fazer uma divisão segundo o critério de alcance geográfico. Temos aí dois grupos, o dos pluricêntricos e o dos monocêntricos. Pluricêntricos são, por exemplo, o inglês, o espanhol, o francês e o português, todos eles falados em vários países de distintos continentes, ou seja, em uma pluralidade de centros. Já como exemplo de monocêntricos podemos destacar o alemão, o italiano, o russo, o mandarim e o hindi, falados em suas regiões de origem e em algumas zonas de influência próximas às suas respectivas fronteiras nacionais.
Também podemos fazer alguns recortes entre os quatro principais idiomas pluricêntricos já citados (inglês, espanhol, francês e português). O inglês domina a América do Norte e parte do Caribe. Marca boa presença ainda na Ásia, na África, na Oceania e na Europa. Mas sua penetração na América do Sul é ínfima, restringindo-se à Guiana. O francês também alcança a América do Norte, a África e a Europa, mas, assim como o inglês, tem papel pequeníssimo na América do Sul. Já o espanhol domina a América do Sul. Está presente também na Europa, mas fica de fora da Ásia e sua participação na África se resume à pequena Guiné Equatorial. Por último, vejamos o português, idioma que se fala na Europa e tem sólida presença tanto na América do Sul quanto na África, chegando inclusive à Ásia – no Timor-Leste, onde é idioma oficial, e ainda em localidades como Macao (China) e Goa (Índia).
A comparação com o inglês é sempre desvantajosa. Por motivos históricos, econômicos e geopolíticos, o idioma anglo-saxão ganha em todos os critérios. Menos em um: a América Latina, um dos principais mercados do mundo, não fala inglês. O francês também sofre desse mal: é praticamente nulo na América Latina. Nisso, o espanhol leva grande vantagem. No entanto, o ponto fraco do idioma de Cervantes é outro: não tem penetração na África, onde estão alguns dos mercados emergentes mais cobiçados pelo capitalismo atualmente. Eis então que surge um possível idioma aglutinador entre América Latina, África e Europa: o português.
Um dos argumentos mais usados pelos detratores do português é que este é um idioma de pobres, usado somente em países do Terceiro Mundo, que não despertam quase nenhum interesse comercial (Portugal, claro, está no chamado Primeiro Mundo, embora seja um país relativamente periférico dentro da União Europeia). O que eu começo a perceber cada vez mais é que esse argumento, aparentemente negativo, pode se converter justamente no contrário: o fato de ter tão grande penetração nos países em desenvolvimento faz com que o português ganhe um importante diferencial estratégico.
Deixo algumas reflexões no ar para que o leitor faça suas próprias conexões e tire suas conclusões: 1) o chamado Sul Global vem, pouco a pouco, se mostrando cada vez mais forte e viável, ganhando voz e voto em temas de importância mundial antes destinados somente aos países industrializados do Norte; 2) o Brasil, com seus mais de 200 milhões de falantes de português, é um dos principais líderes históricos do Sul Global; 3) muita gente não sabe, mas o português é simplesmente o idioma mais falado no Hemisfério Sul do planeta.
Mas, afinal, ser pluricêntrico é uma vantagem?
Acho que essa resposta é fácil. Não tenho dúvidas que ser pluricêntrico traz uma série de vantagens para um idioma. A mais latente delas: o alcance geográfico acaba significando também variedade cultural. Em inglês, por exemplo, se expressam gentes de realidades sociais e humanas das mais diversas latitudes. Aprendendo inglês, você poderá ter contato, em versão original – seja através da literatura, do cinema, do teatro, de audiovisuais, do jornalismo ou de simples conversas e reuniões –, com interações tão díspares em suas histórias e sentimentos como podem ser as de um havaiano, um canadense, um indiano, um neozelandês ou um nigeriano. No caso do português, essa lista estaria formada por brasileiros, portugueses, moçambicanos, cabo-verdenses, angolanos e timorenses, entre outros.
Quero falar aqui sobre duas questões. Uma, sobre as interações em idioma original; outra, fechando o foco sobre a literatura e a riqueza de informações únicas que ela é capaz de proporcionar. Você pode ler Cem anos de solidão em inglês, francês ou português. Admiro muito, inclusive, o ofício do bom tradutor, que tem que ter técnica e sensibilidade suficientes para traduzir informação semântica e estética de uma só vez, equilibrando forças para tentar levar ao leitor estrangeiro o sentimento mais fiel possível à intenção original do autor. Mas voltemos: você pode ler Cem anos de solidão em qualquer idioma, mas nada, nunca, substituirá o ganho que o leitor terá ao realizar a leitura no idioma original. Essa comparação, na verdade, é uma covardia. É claro, é óbvio, é cristalino que a literatura existe para ser lida em seu idioma original. Porque literatura não é somente a história contada. Literatura é a arte de manejar a linguagem. A linguagem é a protagonista de toda boa literatura e a intenção pura da linguagem se dá no idioma original.
O que eu digo para a literatura também pode valer para outros campos. Um espanhol que não fala português pode até ir a uma reunião em Lisboa falando inglês ou mesmo espanhol. Provavelmente, ele se fará entender e a reunião acontecerá sem maiores percalços. Pode até ser que ele feche um bom negócio nessa reunião. Mas também é possível que, se falasse português, fechasse um negócio muito melhor. Os meandros de um idioma não se traduzem tão facilmente. É preciso aprendê-los. E esse fator de empatia costuma ser muito importante no mundo dos negócios. Não o subestimemos. É importante lembrar que esse mesmo espanhol, se tivesse estudado português, estaria apto também a fechar negócios em Moçambique ou Angola, países que clamam por grandes investimentos em infraestrutura.
Dizem que um idioma é a porta de entrada para compreender outras culturas, e há muito de verdade nisso. Dou um exemplo particular: a história da Guerra Civil Espanhola sempre me interessou muito. Li inúmeros livros e artigos sobre o tema, até porque tive que recriar todo o ambiente cultural do pós-guerra para a minha tese de doutorado. Essas informações eram majoritariamente objetivas, escritas por historiadores. No entanto, só fui compreender o verdadeiro sentimento do pós-guerra quando li os versos de Hijos de la ira, livro de poemas de Dámaso Alonso. A literatura nos fornece dados de um cariz impensável para qualquer livro de história. A mesma impressão tive lendo La Colmena, de Camilo José Cela, que é texto em prosa. O que quero dizer é que, se não soubesse espanhol, nunca teria tido acesso a esse tipo de sentimento que só a literatura é capaz de proporcionar.
Concluo voltando a falar sobre o português, com o foco na literatura e no entendimento do mundo que ela traz aos seus privilegiados leitores. Tudo aquilo que talvez algum dia tenhamos aprendido sobre o caráter aventureiro do povo português que se lançava ao mar nos séculos XV e XVI só pode ser realmente compreendido após a leitura de Os Lusíadas. Tudo o que por ventura já tenhamos lido sobre a opressão social em um Moçambique colonizado só pode ser realmente apreendido após a leitura dos versos de José Craveirinha. Todas as intrincadas teias sociais que fazem parte do jeito de ser carioca só poderão ser entendidas em profundidade após a leitura de Machado de Assis.
Conhecer um idioma abre portas à literatura em versão original, que, por sua vez, abre portas a um tipo de informação que não se encontra em nenhum outro lugar fora dela. Conhecer o português é aceder, ao mesmo tempo, aos sentimentos de cerca de 300 milhões de pessoas na África, Europa, Ásia e América do Sul. É um esforço relativamente pequeno (no caso dos hispano-falantes) para um benefício incalculável.
Sérgio Massucci Calderaro