As dificuldades na consolidação de dados de segurança pública se apresentam, hoje, como um dos maiores desafios do Estado de direito. O dilema na América do Sul indica a urgente necessidade de uma ação coordenada entre países e regiões, capaz de promover a qualificação e avanço dos debates sobre o assunto e a elaboração de uma agenda temática prioritária.
A inconsistência de informações sobre crimes, narcotráfico, homicídios e outros delitos, além da baixa interlocução entre os principais atores no combate à contravenção resultam em questões sociais fundamentais, tais como o aumento das taxas de criminalidade e a crescente sensação de insegurança nas ruas. Alinha-se a essas questões a violência policial e a premente necessidade de reforma das instituições da administração da justiça criminal. Esse emaranhado leva a uma caótica situação do sistema prisional, que se soma à precária formação de pessoal de segurança e à morosidade da justiça, entre outros problemas.
No âmbito do sistema carcerário brasileiro, por exemplo, estima-se que no espaço destinado ao preenchimento de 450 mil vagas estejam alocados cerca de 800 mil presos, dentre os quais aproximadamente 350 mil são presos provisórios. Entretanto, falta clareza acerca da condução das investigações, que demonstre uma classificação do percentual de presos por tipo de crime cometido, o que deixa os gestores públicos no escuro no momento de criação e execução de políticas públicas.
Por outro lado, a urgência de ação pública para o setor salta aos olhos quando dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 demonstram que, mesmo em meio ao enfrentamento de uma crise mundial de saúde, houve uma onda de crescimento no número de mortes violentas no Brasil, observada desde o último trimestre do ano de 2019, contrariando a tendência de queda demonstrada entre os anos de 2018 e 2019.
Nesse contexto, o cenário se potencializa ainda mais quando contemplado sob a perspectiva regional sul-americana, demonstrando a fragilidade ou inexistência de redes que conjuguem esforços em busca da paz, de marcos legais convergentes, de coordenação operacional, cooperação na área da inteligência policial e da prevenção de conflitos.
Países como Colômbia e Venezuela ocupam, ao lado do Brasil, alta posição nos índices de homicídios verificados entre o período de 2003 a 2012, com médias nacionais que equivalem ao dobro do considerado epidêmico pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – isto é, com números iguais ou superiores a 10 homicídios por 100 mil habitantes. Somente na Venezuela, a taxa de homicídios cresceu de 44,0 para 53,7 por 100 mil habitantes em 2012, representando um aumento de 22,0% entre os anos de 2003 e 2012.
Nesse sentido, os avanços alcançados pelo crime organizado refletem a existência de um paradoxo central na América do Sul, uma vez que, apesar da inexistência de guerras formais entre os países, a região é altamente marcada pelos elevados níveis de violência social de caráter transnacional.
Observa-se que a dita região, em especial no que tange aos países fronteiriços, busca – desde a reaproximação política vivenciada na década de 1980– o desenvolvimento de um estado de bem-estar social coletivo, principalmente sob aspectos políticos, econômicos e culturais.
Entretanto, para que tal fenômeno se perpetue, deverão ser aprimoradas estratégias de integração e confiança, as quais ainda sofrem com o impacto do crescimento da violência e da criminalidade transnacional. O narcotráfico está na base da violência da grande criminalidade no Brasil e na América do Sul e, sobretudo, da insegurança que sentimos nas grandes cidades de vários países. Conhecer a sua dimensão e debater soluções para o tema é urgente. Sozinho, o Brasil não tem como combater a rota do narcotráfico.
A arquitetura do crime organizado transnacional demonstra o atual estágio de complexidade das organizações criminosas e dos sistemas que elas integram. Prender traficantes e apreender drogas são medidas relativamente inócuas e de baixa capacidade resolutiva. O primeiro passo é reduzir os efeitos violentos da criminalidade, além de fragilizar as redes operacionais do crime organizado e, para isso, é preciso união de esforços em nível de segurança pública nacional e transnacional. Trabalhar com inteligência, conhecimento e dados no âmbito regional.
Ante a baixa expressão de ações articuladas para a superação da criminalidade como um problema de caráter regional e transnacional –com a consequente deficiência de políticas públicas de prevenção e enfrentamento– foi criado o Observatório de Segurança Pública e Cidadania da América do Sul, que tem por objetivo promover a integração de dados, informações, experiências, marcos legais, inteligência e atores do cenário da segurança pública sul-americana, visando subsidiar os processos de tomada de decisão pelos gestores de instituições públicas e privadas da região, bem como pelos poderes e esferas governamentais.
Os pilares de atuação terão por base a pesquisa científica, a capacitação e formação, bem como o aprimoramento de redes de cooperação internacional. Uma cooperação ampla no âmbito da segurança pública para a obtenção de dados que se pode reverter em melhoria das políticas públicas para o setor no ambiente ibero-americano, contribuindo para a cidadania e a integração regional.
Um dos principais fins do observatório é realizar pesquisas, capacitações e o fomento à criação de redes de cooperação para ampliar a capacidade de todo o complexo sistema da segurança. Em suma, contribuir para um novo referencial que veja na segurança pública um espaço importante para a consolidação democrática e para o exercício do controle social.
Este Observatório de Segurança Pública e Cidadania da América do Sul é uma iniciativa da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), em parceria com o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Parte dessas premissas o mandato institucional da OEI que contempla, dentre outras atividades, o reforço e apoio a processos de integração, de pacificação e aproximação dos povos que compõem essa região.
Raphael Callou – Diretor da OEI no Brasil