O escritor iberista Eduardo Lourenço morre num “Primeiro de Dezembro”

Deixa a sua obra e o Centro de Estudos Ibéricos da Guarda como legado

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Eduardo Lourenço (1923-2020), raiano de nascimento e iberista de convicção, morreu ironicamente num “Primeiro de Dezembro”, dia da restauração da independência de Portugal. Com quase um século de existência, o escritor deixa uma obra frutuosa como legado, onde percorreu os labirintos da saudade, refletindo sobre a portugalidade. Como psicanalista dos mitos e traumas portugueses, tentou decifrar a história de Portugal. É um dos últimos grandes pensadores ibéricos a experimentar os grandes eventos da Europa convulsiva do século XX.

Eduardo Loureno, 97 anos, foi humanista no sentido lato do termo que cultivou filosofia, poesia, ensaio e crítica literária a um nível que lhe valeu inúmeros elogios dentro e fora do seu país, incluindo os Prémios Camões e Pessoa e a Medalha de Mérito De Portugal, bem como o Prémio de Ensaio Europeu Charles Veillon. Em Espanha, em 2009 recebeu a Ordem de Número do Mérito Civil.

A carreira de Lourenço, que o levou a lecionar em várias universidades da Alemanha, França e Brasil, ligou-se diretamente à Universidade de Salamanca através do projeto que promoveu e liderou na viragem do século: o Centro de Estudos Ibéricos, sediado na Guarda. É precisamente aí que está prevista uma homenagem à sua figura para o dia 4 de dezembro, coincidindo com os 20 anos da criação do centro, do qual Loureno foi diretor honorário.

Na última Cimeira Ibérica, António Costa e Pedro Sánchez reuniram-se no Centro de Estudos Ibéricos. Lourenço não pôde comparecer porque estava com a saúde enfraquecida. O TRAPEZIO reproduz dois discursos de Eduardo Lourenço e dois vídeos do Youtube, em homenagem ao seu contributo para o iberismo:

Todos nós ibericos

Por ocasião do Oitavo Centenário da nossa cidade surgiu a ideia de criar nesta velha terra de fronteira entre Portugal e Espanha, um Centro de Estudos Ibéricos. A sugestão teve a boa fortuna de ser apadrinhada, de um lado e de outro dessa histórica fronteira, pelas duas instituições que, ao longo dos séculos e, em prioridade, foram um modelo da universidade peninsular: Salamanca e Coimbra. Sem esse patrocínio, não poderia ser levado a cabo o ambicioso projecto concebido para esse Centro: o de contribuir, não apenas para um renovado conhecimento das diversas culturas da Península, mas para o estudo da Civilização Ibérica como um todo.

No estado actual do mundo, ameaçado ao mesmo tempo da uniformização em termos de tecnologia e de disseminação em termos de identidades culturais sobre si mesmas fechadas, a Península Ibérica oferece um exemplo raro de uma Comunidade Cultural de longo passado comum e de heranças partilhadas que a institui como um dos espaços privilegiados onde se joga o sentido da História presente e futura. Já é tempo de cultivar essa vinha comum com um interesse e um fervor incomuns.

A sombra tutelar de Oliveira Martins, criador do próprio conceito de Civilização Ibérica e autor da História dessa mesma civilização, inspira este projecto. Sabemos como Unamuno o admirava e comungava no mesmo ideário Ibérico. Mas o que era apenas ideologia ou visão há mais de um século é hoje conveniência e imperativo dos novos tempos.

Ao conhecimento e à clara visão do que foi e continua sendo a versão peninsular da Europa se deve votar o nosso Centro de Estudos Ibéricos tanto mais que dela faz parte integrante a primeira, e até hoje nunca ultrapassada, vocação planetária da mesma Europa. O que foi sonho do mundo merece ser repensado para saber melhor quem fomos,quem realmente somos e quem podemos ser. Todos nós Ibéricos.

Eduardo Lourenço, Abril de 2001

 

O Duplo rosto da fronteira

O Prémio que este ano o Centro de Estudos Ibéricos, através do seu júri luso-espanhol, atribui ao homem da fronteira e jornalista de televisão, Agustín Remesal, tem um significado muito particular. É o primeiro que é concedido a um homem dos “media” e, ao mesmo tempo, a um intelectual que, ao longo do seu percurso, se tem interrogado de uma maneira apaixonada acerca da vivência singular de um dos espaços “raia” da nossa Península, o que, desde há séculos, separa Portugal de Castela e, mais latamente, Portugal de Espanha.

A História da nossa Península não é propriamente a história de Penélope, uma espécie de tela misteriosa em perpétua urdidura histórica.

Na Europa, “a raia quebrada” a que Agustín Remesal consagrou um excelente e inédito documentário, é um autêntico paradoxo. Ela não é propriamente os Pirinéus ou o Reno, ou o Elba ou o Vistúla, realidades separadoras e obstáculos de densidade palpável, historicamente quase intransponíveis em termos guerreiros.

Fisicamente – geograficamente – nada, nada de diferente separa Portugal da fronteiriça Espanha. É a mesma meseta que nos continua, a mesma planura da Extremadura e com mais força simbólica, os mesmos rios que, como se soubessem onde está o mar deles, recortam o nosso País e se perdem no Oceano. Geograficamente, somos um todo. É a História multi-centenária que nos divide. E essa História é a de uma separação política cultivada e mantida, não sem dificuldade, durante séculos, com as suas peripécias conhecidas e cuja compreensão deve mais às comoções intermitentes da política europeia do que às rivalidades e relações de força do nosso destino comum intra Peninsular.

Há um drama peninsular e nós fazemos parte dele. Mas quando comparamos o nosso destino ao de outros espaços conflituosos da Europa, ao fim e ao cabo, os nossos dramas – e em particular, o de Portugal – têm um lado lírico que outros nos podem invejar. A periferia tem-nos preservado da grande “tragédia europeia”. Uma precoce partida para o largo de toda a tragédia digna desse nome.

Pode pensar-se que esta fuga para o outro lado do Atlântico, onde repetimos a cisão peninsular – relativizou, afinal, a dramaticidade da nossa famosa “fronteira”. Como se entre Portugal e Espanha, de Toro mais do que de Aljubarrota – tivéssemos decidido, não ver, não ter em conta «a nossa “raia quebrada”». Nós sabemos que está lá – aqui mesmo ao lado – como se não estivesse. Tradições culturais de milénios, religiosas, falas tão próximas, deviam tornar, por assim dizer, invisíveis as nossas mútuas fronteiras – e penso que, simbolicamente, e não apenas como bem vindos turistas, os nossos amigos espanhóis assim a atravessam. Paradoxalmente, fizemos da “semelhança” e do mimetismo, para lembrar René Gérard, a mais sólida das fronteiras, feita de quase nada, apenas da vivência secular de uma diferença local que o estatuto de Nação, na Europa e fora dela, universalizou com o nome de Portugal.

Tudo isto podia ser apenas coisa do passado, já sem importância, no momento em que a Europa se desenha como espaço comum – ou assim se sonha – e em que por definição a problemática da fronteira ou os seus problemas – deixam de ser preocupação politica ou militar, como durante séculos. Somos um continente em paz. Isto parece um dado adquirido. Mas que paz? A antiga paixão que a fronteira assinalava como signo de confronto mortal está, sem dúvida, adormecida. É uma boa ocasião para pensar o que é uma fronteira, e não apenas imaginar que desapareceu, magicamente. Mesmo um pequeno país, como a Bélgica, a fronteira pode ser ainda a rua vizinha da Flandres. A nossa, assumida há muito como algo natural, não nos interpela ou nos preocupa como drama virtual.

Temos, agora, todo o tempo para revisitar a fronteira que fomos e ainda somos, anexando como algo familiar e positivo, como faz o nosso premiado Agustín Remesal. Temos sobretudo, tempo para pensar e viver a fronteira como algo positivo. Não apenas o que separa ou ameaça. Mas como algo que nos põe limites que são de espaço e de memória. E que, por isso, paradoxalmente, nos define. E bem pensada é já um diálogo em si mesma. Devemos estar gratos a Agustín Remesal por ter ilustrado, tão concretamente, com a sua paixão pela raia que nos separa e une, a virtude nova em folha deste diálogo de fronteiras em terras da Europa que bem precisa dele.

Eduardo Lourenço. Vence, 21 de Junho de 2006.

 


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