Já não se concebe um mundo sem jornalismo. Considerado por muitos como o oxigénio da democracia, tornou-se na plataforma através da qual a sociedade reflete, questiona, debate, critica e denuncia. Igualmente contemplado como um trampolim para a propaganda de ideias e um instrumento valioso de divulgação cultural, o jornalismo pode ser interpretado como a escrita do instante, um vislumbre da realidade imediata. Ao longo da sua história, constituiu, igualmente, um laboratório, uma escola e até um ginásio onde muitos escritores experimentaram e aprimoraram a sua prosa e poesia.
Um dos exemplos mais destacados dessa interação entre a literatura e a imprensa foi o escritor e diplomata português José Maria de Eça de Queirós. O conhecido autor de obras como ‘A Cidade e as Serras’, ‘A Ilustre Casa de Ramires’ ou ‘Os Maias’, foi o escolhido para protagonizar a primeira conferência da III Jornada das ‘Letras Ibéricas’, a qual se realizou no dia 20 de março, na Fundação Cajasol, em Sevilha.
A iniciativa levada a cabo pela Real Academia Sevilhana das Boas Letras, pela Fundação Cajasol e pela Fundação José Saramago, teve como objetivo aproximar a literatura de ambos os países da península ibérica. Sob o mote da influência do jornalismo na obra queirosiana, a sessão foi moderada pela jornalista e escritora Eva Díaz Pérez e contou com a presença de Carlos Reis, professor emérito da Universidade de Coimbra, autor da ‘Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós’ e membro da Real Academia Espanhola desde 2009.
O evento teve início às 19 horas, na Sala Salvador da Fundação Cajasol. O espaço, amplo e desprovido de distrações, conduzia naturalmente o olhar do espectador para as duas figuras sentadas no centro do palco: à esquerda, Eva; à direita, Carlos. O ambiente assemelhava-se a uma página em branco à espera de que da pena pingasse a primeira gota de tinta. Estava prestes a ser escrito um livro intitulado ‘Eça de Queirós entre o jornalismo e a ficção’, com a epígrafe a cargo da moderadora Eva Díaz e os capítulos nas mãos do académico.
Com evidente afeto e respeito, a jornalista iniciou a sessão com uma breve apresentação do escritor da Póvoa de Varzim, considerado o expoente máximo do realismo português do século XIX. Não tardou a estabelecer-se o paralelo com o país vizinho. Nada mais, nada menos, que o romancista, dramaturgo, cronista e político espanhol Benito Pérez Galdós, que viria a ser o centro das atenções nas conferências seguintes destas jornadas. “Durante o século XIX”, especificava Eva Pérez, o jornalismo “era ainda um espaço onde alguns literatos escreviam pontualmente. No entanto, em certos casos, esta presença revelou-se mais chamativa e importante. É precisamente o exemplo destes dois autores”. Assim, o jornalismo convertia-se em “inspiração e fonte documental; o constante contacto com a realidade proporcionava-lhes uma radiografia certeira do seu presente”.
Para compreender Eça de Queirós, é fundamental entender a sua “posição oscilante entre dois territórios: o jornalismo e a ficção literária”, aclarou Carlos Reis, que, num gesto de cortesia e consideração para com o país que o recebia, falou integralmente em espanhol. Com apenas 20 anos, o futuro mestre do realismo português, começou a suas andaduras pela imprensa na ‘Gazeta de Portugal’ (1866-1867), onde publicou o seu primeiro artigo, ‘Notas magistrais’. Especializou-se depois no ‘Distrito de Évora’ (1867) e em ‘As Farpas’ (1871-1872), amadureceu na ‘Gazeta de Notícias’, do Rio de Janeiro (1880-1897, com interrupções), fundou e dirigiu a ‘Revista de Portugal’ (1889-1892) e terminou a sua carreira como colaborador da ‘Revista Moderna’ (1897-1899).
Cada meio por onde passou contribuiu para alimentar o seu vasto oceano literário. “Escrever num contexto jornalístico favorecia a aprendizagem e observação crítica da realidade”, sublinhou o catedrático. O contacto direto com a sociedade que o rodeava permitia-lhe abordar “a fragilidade humana, os problemas sociais, as ideias literárias, algumas questões de política internacional e os costumes”, lançando mordazes críticas e justas zurzidelas das quais nem o próprio jornalismo se escapava – de facto, “a sua obra está cheia destes profissionais, como é exemplo o livro ‘O Crime do Padre Amaro’”. Estas características vinham acompanhadas de uma “frescura, vivacidade narrativa, descrição sem rodeios e finíssima ironia” – traços distintivos da sua prosa e reconhecidos por Eva Díaz.
Numa relação de simbiose entre ambas as disciplinas em questão, por um lado, o escritor integrava nos seus textos literários uma seleção de temas mediáticos e, por outro lado, a sua presença regular “nas páginas da imprensa do seu tempo garantia-lhe notoriedade, leitores e até benefícios económicos”, salientava Carlos Reis. Ao fim ao cabo, era “uma forma de consolidar o denominado ‘homem das letras’”. Aproveitando uma breve pausa para respirar, o especialista queirosiano fez questão de lembrar ao público que “Eça não era jornalista, mas sim um romancista e cronista, que colaborou muito com a imprensa, desenvolvendo sobretudo o estilo da crónica”.
Foi precisamente nesse registo literário, interpretado pelo próprio Eça como uma conversa íntima entre o jornal e os leitores, onde mais luziu a sua genialidade. Como ponto alto do colóquio, o catedrático apresentou a crónica intitulada ‘No mesmo hotel’. Trata-se de um exemplo que não só evidencia o engenho do escritor, como também denota o diálogo entre os países ibéricos, uma vez que o seu relato versa sobre o assassinato do presidente espanhol Antonio Cánovas del Castillo, ocorrido a 8 de agosto de 1897. Com Espanha submergida nas turbulentas décadas, um anarquista italiano disparou contra o então presidente aquando da sua estadia no balneário de Santa Águeda, no norte do país, numa tentativa de vingar as injustiças sociais que considerava que o regime de Restauração tinha causado.
Consciente da efemeridade da notícia, Eça aproveitou o desvanecer do acontecimento (esperou um mês até publicá-la), para lhe introduzir um “impulso fictício que não contradiz a lógica da crónica”, segundo elucidou o catedrático. “O romancista, convertido em cronista, deriva até à retórica do conto, distancia-se do facto concreto e reduz o desenlace à dimensão de um breve episódio”.
Recorrendo à alegoria e a uma caracterização quase antagónica dos protagonistas – na qual Cánovas surge descrito com minucia, enquanto o assassino, com “atributos misteriosos e inclusive aterradores” permanece no anonimato –, Eça de Queirós antecipava as “técnicas narrativas que a linguagem fílmica trataria de elaborar e consumir”. Produzindo um efeito de suspense ao estilo hitchcockiano, o cronista relatava nas páginas da ‘Revista Moderna’ “um movimento de câmara cinematográfico brutal”, que o catedrático ajudou a visualizar mediante a leitura em voz alta da peça traduzida por Isabel Soler e disponível no site do Instituto Cervantes.
A influência do jornalismo na obra do autor português manifesta-se tanto como fonte de inspiração quanto como instrumento para aprimorar a sua escrita e o seu olhar crítico sobre a sociedade. Na opinião de Carlos Reis, o escritor do século XIX – cujos restos mortais foram sepultados no Panteão Nacional em janeiro de 2025 – inventou, em certa medida, “a linguagem literária que hoje existe em Portugal”. Eça de Queirós não só “viu muito para além da realidade contingente que descreveu”, como também “a ’graça’ com que escrevia – no sentido de olhar para as coisas e ver nelas um aspeto caricato e divertido e dizê-lo em termos que mais ninguém ousou –” contribuiu decisivamente para a consagração do português contemporâneo.
A terceira edição das ‘Letras Ibéricas’ prosseguiu os seus esforços para reunir académicos e escritores de ambos os lados da fronteira. Espanha e Portugal são mais do que países vizinhos: partilham uma história comum e uma grande proximidade geográfica e cultural. Segundo constata Carlos Reis, “felizmente, há um interesse crescente por parte dos espanhóis em conhecer melhor a literatura portuguesa e isso ficou a dever-se, nos últimos 50, quase 100 anos, a alguns escritores que tiveram um grande impacto em Espanha”. Embora admita que Eça teve uma maior projeção no Brasil do que em território espanhol, sublinhou, igualmente, o papel essencial de literatos como Fernando Pessoa e José Saramago na consolidação desta interação ibérica.