EL TRAPEZIO entrevista Mariachi Sol de Lisboa: “Gostar da música latino-americana é mais fácil do que parece”

A paixão pela música latina e pelo mariachi é o que os move a convidar o público português para a verdadeira fiesta mexicana. Atuam na Jornada de Portas Abertas do Instituto Cervantes, em Lisboa, já na próxima quarta-feira, às 18h45

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No quotidiano, raramente se encontram vestígios de uma ponte entre Portugal e o México, a não ser quando se trata de escolher o destino de férias ou quando um português descobre os efeitos da tequila. Em 2019, contudo, o sonho de uma mexicana e a vontade de um português pareciam mudar esse panorama, quando Jacqueline Fernández e Rui Meira decidiram “ramificar” o projeto de música latino-americana que já tinham em conjunto e criar algo mais autêntico do México para mostrar aos portugueses.

Assim nasceram os Mariachi Sol de Lisboa, inspirados no estilo musical do estado mexicano de Jalisco que, curiosamente, partilha com o fado a sua entrada para a lista de Património Cultural Imaterial da UNESCO, em 2011. Partindo do mariachi, percorrem nos seus concertos e eventos alguns dos géneros mais populares daquele país, como a música ranchera, os huapangos, o bolero ou mesmo a cumbia.

Em vésperas do próximo concerto da banda no Instituto Cervantes de Lisboa, no dia 28, o EL TRAPEZIO esteve à conversa com os dois fundadores e com outro integrante do grupo, o cantor Bruno Almeida.

 

Como nasceram os Mariachi Sol de Lisboa?

JACQUELINE FERNÁNDEZ – A nossa trajetória enquanto grupo passa um pouco pela de cada um de nós. Eu já me dedico há mais de 15 anos à música da América Latina. Sou do México, vim para Portugal em 2004 e aqui conheci o Rui, que me apresentou a música peruana, chilena e venezuelana. Descobrimos que tínhamos o mesmo gosto e criámos, nessa altura, um primeiro grupo chamado Espírito Nativo, de música tradicional da América Latina.

Entretanto, sempre tive a ideia de formar um grupo baseado na música do sul do México, de Veracruz, que é a bamba. A bamba não é aquele rock and roll que conhecemos do grupo Los Lobos, mas uma canção que conserva uma origem negra trazida pelos escravos que vinham de África e de Espanha. É também conhecida como o ritmo jarocho ou de tarima, tocado com harpa, violino e um instrumento típico dessa zona, a jarana.

O que eu queria mesmo era dar a conhecer esse estilo, mas percebi que o mais procurado era o mariachi. Então, em 2019, decidimos fazê-lo, mas fazê-lo bem, com partituras e trajes – que eu própria também cosi à mão – honrando esta música que é Património Imaterial [da UNESCO] desde 2011, tal como o fado. Somos um mariachi misto, o que não é muito usual (normalmente são só mulheres ou só homens) e creio que somos o primeiro em Portugal. Bem feito, claro. [risos]

RUI MEIRA – Tal como a Jacqueline, também estou ligado à música da América Latina há já muitos anos. Comecei a conhecer este tipo de música – estes tipos, porque são muitos – com um chileno que viveu cá e com quem tocava. Ele ensinou-me muito sobre a música do Chile, da Argentina, do Perú, mas confesso que, até conhecer a Jacqueline, o México era mais ou menos desconhecido para mim. Depois, com o trabalho que fiz com ela, comecei a descobrir a música mexicana, os ritmos, os mariachis… Na verdade, já sabia o que eram os mariachis, mas passei a entender melhor como funciona este tipo de formação.

BRUNO ALMEIDA – Eu venho de uma área completamente diferente: sou cantor lírico. O meu primeiro contacto com a música latino-americana foi numa tuna universitária, mais ou menos em 1996. Lembro-me que, na altura, tínhamos muito contacto com tunas espanholas que, ao contrário de nós, tocavam muita música da América Latina. Foi a partir daí que fui conhecendo essas sonoridades e, mais tarde, já durante a pandemia, entrei nos Mariachi a convite do Rui, que já conhecia de outros projetos.

 

Porquê criar um mariachi em Portugal?

JACQUELINE – O que eu queria, sobretudo, era apagar essa ideia de paródia que, aqui em Portugal, existe da música mariachi e mexicana. Em Espanha, pelo contrário, já se conhece bem esta música e têm-na difundido de uma maneira honrosa, mas aqui ainda se faz muita paródia e conhece-se muito pouco deste estilo. Essa foi a minha principal motivação. Mas também sentia falta de fazer a minha música, de outros países. E, como mexicana, também gosto de cantar outros estilos da música do meu país, que são muito festivos.

Curiosamente, dizem que a palavra “mariachi” vem do francês mariage [casamento] porque, quando os franceses estavam no México, faziam festas e casamentos onde se tocava este tipo de música. Hoje, porém, já existem teorias de que a palavra provém de uma língua nativa e que significa mesmo “festa”.

 

Como tem sido a receção da vossa música e do estilo mariachi?

BRUNO – A receção tem sido ótima. Nota-se que a nossa própria evolução musical cativa cada vez mais as pessoas, mas eles [Jacqueline e Rui] têm vindo a fazer um trabalho extremamente informado, no sentido de ir às origens, às razões… No fundo, um trabalho de musicologia. Não é um projeto que nasce assim do ar, sem uma lógica. Há muita vontade de mostrar este estilo de música, da forma mais genuína possível. Eu digo-lhes isto muitas vezes. Embora não tivesse essa imagem da paródia, porque conhecia [o mariachi] através de outros canais, a riqueza da música latino-americana, e deste estilo em especial, é muito maior do que se pode imaginar.

Nesse sentido, acho que temos feito um bom trabalho, de uma forma séria, sabendo que tocamos sempre música alegre. Temos públicos muito diferentes, desde o público dos eventos, que vai sem estar à espera, ao público dos concertos, que vai porque já sabe o que vai ver. Mas acho que, no geral, as pessoas têm gostado muito.

 

Entretanto vão atuar no Instituto Cervantes, em Lisboa. Como surgiu o convite?

JACQUELINE – Com o nosso outro grupo, Espírito Nativo, já tivemos apresentações assim mais oficiais. Ainda antes da pandemia, colaborámos com a Embaixada do Perú e do México na celebração do Día de los Muertos, mas quisemos, com esta apresentação, mostrar o mariachi. As pessoas já conhecem os Espírito Nativo, já sabem o tipo de música que tocamos, por isso queríamos divulgar o mariachi. O Instituto Cervantes aceitou a ideia e, por isso, vamos fazê-lo.

 

E que espetáculo vão apresentar?

BRUNO – Eu ainda não sei, vou ser informado. [risos]

RUI – Basicamente vamos apresentar o reportório mariachi. Dentro deste estilo de música, há algumas peças quase obrigatórias, porque pertencem ao reportório de qualquer mariachi. Há temas que vamos tocar exatamente como foram escritos, no tom em que foram compostos, e vamos também ter surpresas. Com o conhecimento que temos de outros estilos, também derivamos um bocadinho para outros estilos de música – sempre da América Latina – e não tocamos apenas mariachi e mexicano.

 

Quem for às vossas redes sociais, encontra lá muitas curiosidades e factos sobre o México. Por que é importante para vocês fazer essa divulgação?

JACQUELINE – Para mim, é importante que as pessoas saibam o que estão a ver quando nos veem: o porquê do traje, do sombrero… Cada parte do traje mariachi tem um significado. O traje de charro, por exemplo, é um traje que na Argentina se conhece como gaucho – em Portugal e em Espanha diz-se “de cavaleiro” – e tem esse significado da figura que corteja a mulher e que monta a cavalo. Tudo isto são detalhes que muita gente não conhece, e isso estende-se a toda a cultura mexicana. Muita gente não sabe, por exemplo, porque fazemos serenatas, o que significa a expressão “levar um galo” ou porque conhecemos o dia de aniversário como mañanitas. E eu quero dar a conhecer tudo isso ao povo português, para que aprenda a dar valor.

RUI – Isso também faz parte de uma preocupação geral nossa, é uma posição perante as coisas. Há uma constatação básica de que só se pode gostar de algo que se conhece. Nós fomos um bocadinho mais longe: só se ama aquilo que realmente se conhece. Então fazemos sempre um enquadramento musical – e também da parte geográfica e histórica – de todos os géneros que tocamos. Acreditamos que a música em si é suficientemente cativante, mas quanto mais se conhece do seu entorno, melhor.

 

Por exemplo, por que se conhece este mês de setembro como o mês pátrio do México?

JACQUELINE – Precisamente porque, no dia 15 de setembro, celebra-se o Dia da Independência do México, mais concretamente o Grito de Dolores. Deu-se quando um padre descendente de espanhóis foi à cidade de Dolores (atualmente Dolores Hidalgo) reclamar os direitos de quem vivia no México e, assim, aconteceu a independência do país. Por isso, durante todo o mês, celebramos este dia com vários pratos, decorados com as cores pátrias: verde, vermelho e branco. Fazemos, por exemplo, um prato que se chama chile en nogada, que tem o chile [pimento] verde, um molho branco e a romã de cor granada.

 

Sobre a cultura mexicana, os portugueses ainda não conhecem e deviam conhecer…

RUI – Um bocadinho daquilo que menos se conhece do México. Sempre tivemos a preocupação de mostrar as outras partes da América Latina que menos se conhecem aqui. Toda a gente sabe o que é o tango, a salsa, o samba ou até o mariachi. Mas há outros estilos musicais no México, nomeadamente da região de Veracruz, que são muito ricos. Pelo nosso enquadramento histórico, Portugal não está muito virado para a América Latina de expressão espanhola, mas gostávamos que as pessoas conhecessem mais sobre estes estilos. E nós também estamos aqui para trabalhar sobre eles.

BRUNO – Eu posso acrescentar que o que me interessa mais no México são as ligações entre os estilos musicais. Gostar da música latino-americana é mais fácil do que parece. A linguagem destes estilos é uma linguagem que nos é próxima, a matriz é a mesma. Por exemplo, uma das coisas mais emocionantes que me aconteceu enquanto músico e pessoa foi participar no concerto 100 Músicos para Amália, de homenagem a Amália Rodrigues que, possivelmente, foi das pessoas que mais fez pela divulgação da música mexicana em Portugal. Porque ela gostava e sentia uma ligação a essa música, não porque fosse uma obrigação. Sabemos perfeitamente que ela gostava de ter sido cantora de flamenco, mas também gostava muito de rancheras e até cantava várias. Então pude interpretar “com” a Amália uma ranchera que a Jacqueline também canta muito bem. Melhor do que Amália, até. [risos]

Enquanto cantor lírico, sei que muitos tenores cantam música mexicana, por isso, para mim, é mais normal. Mas, enquanto português, também sei que há possibilidade para ouvirmos música mexicana e latino-americana e sentir essa identificação. Não há aqui uma barreira que nos impeça de gostar e de fruir desta música.

JACQUELINE – Também gostava que isso acontecesse. Quero que se saiba realmente o que é mariachi, que se lhe reconheça o valor e que não se veja como uma paródia, muitas vezes manipulada pela publicidade. Por exemplo, pensa-se que o sombrero é muito grande para cobrir do sol, e não é assim.

A minha mensagem é que se descubra o verdadeiro México. Enche-me de admiração quando os portugueses nos veem simplesmente com os trajes, como uma coisa típica, e o rosto se ilumina. Já é uma festa quando nos veem, mas também sorriem porque sabem que vamos tocar algo bem. E isso, para mim, é também um certo redescobrimento. Ver que, em cada país do mundo, o México é representado pelo seu mariachi e que, agora, também Portugal tem o seu.

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