Susana Travassos (Faro, 1982) é uma cantora portuguesa com a lusofonia na voz e uma alma verdadeiramente ibero-americana. Da infância e juventude em Vila Real de Santo António, onde conviveu também com a realidade espanhola, rapidamente saltou para o Brasil onde ficou por algum tempo no embalo da bossa nova, enquanto descobriu, nos países vizinhos de língua espanhola, o encanto do tango e do folclore mais tradicional.
De volta à sua terra-natal, o Algarve, revela ao EL TRAPEZIO que quer explorar mais a sua ligação com Espanha para além dos laços familiares e da língua. Uma língua sem fronteiras que descobriu em criança, mas que quer abraçar agora como parte da sua identidade, sem esquecer a cultura que a criou.
Vive hoje onde viveu em criança, numa terra de fronteira. Como sente esta característica e a proximidade com Espanha?
Desde logo, há um contacto com uma outra cultura e uma proximidade com a diferença que eu acho muito especial. Aqui, em Vila Real de Santo António, somente o rio Guadiana me separa de Espanha, mas em dez minutos estou em Ayamonte e tenho acesso a uma cultura muito diferente, outro idioma, outra gastronomia.
E isso é algo que, ao longo do tempo, vou percebendo como uma particularidade e tenho explorado mais nos últimos anos, quando comecei a cantar em espanhol. Antes não o fazia tanto, porque a minha vida deu outras voltas e agora estou a viver quase um regresso da América Latina para a Península Ibérica.
Entretanto andou pelo Brasil… Como foi lá parar?
Aconteceu naturalmente. Eu já gostava muito da música brasileira, sobretudo da Elis Regina, que é uma inspiração maior para mim pelo modo de interpretação. E, por isso, o meu primeiro disco, Oi Elis, foi uma homenagem a ela, numa altura em que tínhamos o costume de cantar a música do Brasil com sotaque brasileiro. Tenho a ideia de que só havia uma cantora que não fazia isso, a Eugénia Melo e Castro, que considero pioneira em levar o sotaque português para o Brasil.
E eu também decidi fazer isso, mas achei que estava a cometer um pecado. Lembro-me até de receber comentários de outras cantoras e músicos que achavam isso estranho. A Carminho chegou a dizer-me mais tarde – quando lhe ofereci o meu segundo disco, Tejo-Tietê – que também estranhava isso em mim. Mas ela, o António Zambujo e outros, que começaram a cantar com o sotaque brasileiro, hoje já não o fazem. No meu caso, não podia ser de outra maneira. Para mim, a música tem uma base de verdade muito grande que não consigo contornar.
Quando fui então para o Brasil, inicialmente apenas para um concerto, acabei por ficar lá oito anos! Aí sim, deu para aprofundar esta relação de outra forma [risos]. Cheguei lá como portuguesa, como algarvia, e o contacto que fui tendo com compositores locais fez-me cantar coisas que ninguém tinha cantado antes com o sotaque português. Fui, por isso, conhecendo mais a música brasileira e incorporando até alguma leveza do canto da bossa nova, mas cantando sempre com a minha história vocal, as minhas raízes.
E conheceu também outras paragens na América Latina, até do lado hispanófono. De que forma estabeleceu essa ligação?
Claro, tenho outras influências desse lado também. A Lila Downs, mexicana, por exemplo, mas também, através do meu avô, os tangos de Gardel. São essas influências que me fazem depois sair do Brasil e ir gravar o meu último disco Pássaro Palavra, em 2019, a Buenos Aires. Também o fiz porque não queria ficar associada à música brasileira, mas tudo aconteceu de uma forma intuitiva. Apenas deixei-me ir e as coisas foram acontecendo.
Comecei a cantar na Colômbia, já fui ao Uruguai, mas nunca consigo acabar um concerto e ir logo embora. Gosto de conhecer a cultura, os músicos locais e, sempre que possível, estabelecer parcerias. Há sempre uma troca que me faz regressar diferente, com novas referências musicais. E este disco mais recente é a prova disso. Canto em português e em espanhol, com músicas minhas e de outros tocadas por músicos de lá, em que também exploro o folclore argentino… Para mim, é algo bastante natural.
Voltou agora das Canárias, depois de ter estado a participar no MAPAS. Como foi essa experiência?
Foi uma experiência maravilhosa. Já lá tinha estado há três anos para participar na “roda de negócios”, que promove encontros entre os artistas e os promotores, mas na altura não tinha nenhum showcase. Este ano decidi concorrer com um projeto meu e fui selecionada, o que me deixou muito feliz por ser uma oportunidade para me apresentar e abrir novas possibilidades de palcos.
Depois, por uma questão financeira, não consegui levar comigo a minha banda de Portugal. São oito músicos e três técnicos, ainda é uma equipa grande que se torna dispendiosa. Mas como tenho este projeto todo escrito, com partituras de tudo, foi fácil chegar lá e pedir a músicos que leem [música] muito bem para me acompanharem. Tocaram comigo o contrabaixista Tomás LP Cruz e a pianista Satomi Morimoto, que já tinha conhecido da primeira vez que lá fui, mas também um trio de cordas local e o Takeo Takahashi na bateria. Tivemos só dois dias de ensaios, mas o resultado foi muito bonito. Missão cumprida!
E que importância vê nessa “missão” de representar Portugal além-fronteiras?
Não é fácil [risos]. Neste caso, tem um peso [grande], ainda para mais sendo a única portuguesa. É uma responsabilidade, primeiro, por ser um projeto complexo, com muitos arranjos, que nos deixa na expectativa de saber se tudo correrá bem. Mas é também um orgulho, estar ali a mostrar um pouco da música portuguesa, da nossa língua, a pessoas que não as conhecem.
É preciso dizer também que apresentei um projeto cantado em português que não é fado. A verdade é que a música que se faz em Portugal está ainda muito catalogada lá fora apenas como fado. Eu tenho o fado como influência e também o canto, mas a minha música tem outras influências que já me levaram, por exemplo, a festivais de jazz em Buenos Aires, em Bogotá… E isso dá-me um certo gozo, perceber que a minha canção causa uma certa estranheza, mas que ainda assim consegue chegar ao público sem um selo.
Depois de fazer este concerto, a pianista que tocou comigo escreveu um post no Facebook a dizer algo do género: “Fiquei fascinada com o mundo dela a cantar e a capacidade de desfrutar da sua performance. Esta música enche o coração com o tango argentino e o fado de Portugal. Expressar estas lágrimas não é algo que se aprenda na faculdade. É muito difícil, a sensibilidade é muito diferente entre os países. Será que esse é o desafio da vida de um cantor?”. Achei isto engraçado, fez-me pensar que levo sempre comigo a identidade portuguesa, mesmo inconscientemente.
Entretanto veio para Portugal em 2018, ano em que recebeu também o convite para o Festival da Canção pela mão da angolana Aline Frazão. Mais uma prova da sua lusofonia…
Este regresso [a Portugal] foi muito atribulado, sem dúvida… Tive uma perda familiar, muito complicada, mas depois este convite da Aline veio como um alento. Gostei muito da experiência e sobretudo da canção da Aline, que foi aquilo que me fez aceitar este convite que não tem muito que ver comigo. Eu não combino muito com esse tipo de concursos, não é a minha praia.
Talvez achasse, no entanto, que isto fosse abrir mais as portas no meu próprio país, o que, de certa forma, me dececionou. O meu disco Pássaro Palavra foi, de facto, gravado para Portugal e eu esperava uma abertura maior, com a ajuda da minha exposição no Festival. Nesse aspeto, essa participação não foi tão boa.
Agora, teve também um lado positivo porque aprofundou a minha relação com África e a lusofonia africana, apesar de não estar inscrita na música que eu tenho gravado. Esta ligação está em mim. Tenho feito parcerias lá, estive em Cabo Verde e também tenho uma influência forte da música cabo-verdiana. Espero algum dia fazer mais com isso…
Ser ibérica, para si, significa…
Ser completa. O meu bisavô era espanhol e ainda hoje tenho família espanhola. Portanto, sinto que aproximar-me de Espanha faz de mim mais completa. É curioso que sinto isso também quando chego a Espanha e contacto com pessoas mais festivas e descontraídas, com uma energia diferente daquela mais densa e melancólica que eu acho que os portugueses têm. Ao estar em Portugal, incorporo essa energia, essa alma lusitana, e faz-me falta o lado espanhol que me dá um certo equilíbrio. E acho mesmo que, se Portugal e Espanha fossem mais próximos, seriam mais equilibrados. Os portugueses podiam dar mais o lado da interioridade e, em troca, receberiam um pouco mais da alegria de viver dos espanhóis.