Miguel Crespo: A cooperação entre os meios de comunicação de Portugal e Espanha “deve começar nas regiões transfronteiriças”

O jornalista e investigador é um dos participantes de um estudo recente que aponta as tendências e inovação do ecossistema mediático ibérico entre 2025 e 2030

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Segundo o retrato feito pelo relatório do Observatório Ibérico de Média Digitais e da Desinformação (Iberifier) – elaborado a partir de entrevistas a mais de 70 peritos e publicado a 10 de janeiro de 2024 – o contexto mediático ibérico passará por alguns desafios até 2030. Um deles será a necessidade de o jornalismo se diferenciar de outros conteúdos e demonstrar um maior rigor ético, promovendo a verificação de factos e o reforço de boas práticas no combate à desinformação.

Para Miguel Crespo, jornalista e um dos colaboradores do estudo feito pelo Iberifier, isto já não é uma novidade, mas esta questão precisa de ser levada mais a sério. Num contexto de crise do “negócio do jornalismo” e em que se discute os problemas que afetam a liberdade de expressão do setor, a poucos meses da celebração dos 50 anos da revolução que afastou a censura política em Portugal, o investigador reflete sobre o que falta fazer nesta área, as tendências que vão influenciar os próximos tempos e a possibilidade de cooperação entre países em matéria de informação.

 

Em termos gerais, como estão o jornalismo e os média em Portugal e Espanha?

As situações em Portugal e Espanha são muito similares em alguns aspetos e muito diferentes noutros. Por um lado, são muito semelhantes no facto de haver uma grande concentração dos média nas maiores zonas urbanas da Península Ibérica (Lisboa, Madrid e Barcelona) e de haver grandes áreas – no caso português, é ainda mais claro do que no espanhol – que não têm qualquer cobertura informativa, seja de imprensa, rádio, online ou outra. Isso é obviamente um problema grave. Já se fala há algum tempo de “desertos de notícias”, principalmente em Portugal, mas, no âmbito de investigações da Iberifier, chegámos à conclusão de que também existem em Espanha, não sendo tão visíveis pela dimensão do país e pela menor centralização [dos média] comparativamente a Portugal. Grande parte da população portuguesa vive no eixo Braga-Setúbal, junto à costa, e tudo o resto, infelizmente, é paisagem sobre a qual não temos informação direta. Existem grandes regiões entre Lisboa e Madrid, por exemplo, que, de ambos os lados da fronteira, são autênticos desertos do ponto de vista comunicativo e informacional.

Por outro lado, em termos económicos, os média em Portugal parecem ser, neste momento, mais débeis do que em Espanha. Por exemplo, pela questão da concentração, já que meia dúzia de grupos concentram grande parte do negócio dos média em Portugal. Não em número de títulos, mas pela importância que estes têm em todas as plataformas: imprensa, rádio, televisão e online. Em Espanha este negócio não é tão centralizado e, apesar de também ter os seus problemas, a dimensão do país permite que a situação não pareça tão dramática.

Algo que é muito diferente entre os dois países é a polarização dos média. Em Espanha há, por várias tradições políticas e autonómicas, uma grande polarização dos meios, com linhas editoriais muito ligadas a partidos, movimentos autónomos ou unionistas. Uma das consequências que vemos dessa polarização tem que ver com a confiança nas notícias. Portugal é um dos países onde mais se confia em notícias ao nível europeu e dos mais de 50 países que fazem parte do Digital News Report, enquanto Espanha é dos lugares onde isto menos acontece. Por muitas críticas que sejam feitas, os meios em Portugal são muito mais neutros do ponto de vista do alinhamento político ou ideológico. Mesmo que ele exista, não causa uma consequência tão impactante no consumo e na confiança.

 

Em relação aos “desertos de notícias”, um relatório de 2022 da Universidade da Beira Interior (UBI) mostra que mais de metade (cerca de 54%) dos municípios portugueses serão mesmo desertos ou estão em risco de se tornarem num. Se muitas pessoas nem sequer têm acesso a informação credível ou compreensível, como podem confiar nas notícias?

Confiam nas que têm, o que não quer dizer que tenham acesso a todas as que deveriam ter. Antes deste trabalho da UBI, já tínhamos clarificado esta questão no Iberifier com o mapa interativo de meios de Portugal e Espanha. É um mapa que representa mais de 5000 meios dos dois países, de acesso aberto, que consideramos muito útil para perceber estas assimetrias.

Também é preciso explicar que o facto de haver muitos municípios nesta situação não significa que a maior parte da população seja afetada, porque, como já disse, a população portuguesa concentra-se muito num eixo específico do litoral. No caso espanhol já não é tão claro assim. Fora desse eixo, sabemos que as pessoas não têm acesso àquilo que se passa na sua terra, nas suas redondezas, nas questões que são relevantes para si. Aqui não tem que ver com confiança porque a informação nem sequer existe. Esse é um problema que, no caso português, está muito relacionado com a imprensa regional e as rádios locais, que são meios normalmente pequenos, pouco profissionais e muito institucionalizados por autarquias, empresários locais, pela Igreja Católica e, mais recentemente, por entidades ligadas a outras religiões. Sendo meios locais, não são meios de proximidade e revelam uma agenda clara de apoio aos poderes, sejam eles quais forem.

 

Há, portanto, o perigo de se tornarem “reféns” de um discurso exclusivamente ligado aos interesses dos poderes e pautado, muitas vezes, pela desconfiança nas instituições políticas e por ideias populistas que perigam as nossas democracias. Como fazer-lhes chegar informação segura e confiável?

Existem alguns exemplos em Portugal – falo deste contexto porque o conheço melhor do que o espanhol – que provam que isso é possível. Vou citar apenas três, de sul para norte. Começo pelo Sul Informação, um projeto exclusivamente online que cobre as regiões do Algarve e do Baixo Alentejo, onde a informação não é feita a partir de press releases ou de notas oficiais, mas pelo trabalho dos jornalistas que vão aos locais. O resultado é ter-se transformado num meio de referência para quem vive, é natural ou se interessa por informação daquela região, com um foco em questões relevantes para as pessoas, desde a política ao desporto regional, às atividades culturais e às incidências do dia-a-dia.

Um segundo bom exemplo é o Médio Tejo, que abarca a região centro-interior de Portugal, em municípios não muito grandes, e que tem também uma lógica de proximidade. E ainda, se quisermos algo a uma escala mais pequena, temos o Terra de Miranda, em Miranda do Douro, que funciona pela mesma lógica, fazendo uma cobertura de assuntos relevantes sem estar demasiado ligada aos poderes institucionais.

Portanto, é possível fazer esse trabalho. Obviamente não é fácil, mas não será muito mais caro do que fazer aquilo que fazem tradicionalmente os meios locais. É preciso apenas procurar uma forma diferente de estar mais próximo das populações e das suas verdadeiras necessidades.

 

Ao passo que esta forma de jornalismo acaba por trazer uma maior interatividade e uma certa personalização das notícias, que apontam como tendência no vosso estudo, os meios estão também, cada vez mais, a virar-se para as redes sociais, fazendo uma distribuição homogénea da informação. Como se explica, a seu ver, este paradoxo?

O uso das redes sociais [pelos média] é uma questão muito complexa, mas muito interessante de refletir quando estamos a falar deste jornalismo de proximidade. Têm surgido por todo o lado – e a Península Ibérica não é exceção – páginas no Facebook, Instagram ou canais no YouTube de bairros ou pequenas povoações, onde são publicadas informações feitas por jornalistas ou quase-jornalistas, outras vezes apenas por cidadãos, que substituem a falta de informação de proximidade. Isto verifica-se não só nos “desertos de notícias”, mas também dentro das cidades. Em Lisboa, onde vivo, existem imensos projetos deste tipo onde as pessoas partilham notícias relevantes para a comunidade em jeito de notícia ou acrescentam informação contextual sobre notícias publicadas em meios nacionais. Por exemplo, quando há obras no Metro, as pessoas partilham uma notícia de um jornal como o Público e informam sobre aquilo que vai mudar nas suas vidas, o que vai melhorar ou piorar. E as redes sociais potenciam isto.

O mesmo já não é verdade para os órgãos de comunicação social. E isso é um problema que deriva do facto de não se valorizar muito a interação e a importância de ter uma comunidade de seguidores, mas também por não se investir quase nada nesta área em Portugal. A distribuição que os meios fazem é cega, de facto, mas vemos que os poucos que têm apostado nesta interação têm beneficiado com isso, sobretudo os meios mais locais.

 

Outra das tendências identificadas no vosso estudo é a crescente integração da inteligência artificial (IA) em tarefas jornalísticas, desde a recolha à produção e à distribuição de notícias. Que vantagens e desafios traz este novo player?

As vantagens mais imediatas têm que ver com reduzir as tarefas industriais dos jornalistas. Por exemplo, desgravar uma entrevista como a que estamos a fazer consumiria muitas horas de trabalho num passado recente, mas agora pode ser feita de forma automática usando um software com IA. Obviamente será ainda preciso editar algumas incorreções, mas a transformação inicial de áudio para texto pode ser automatizada. Outra das vantagens pode ser fazer um melhor jornalismo per se, explorando ferramentas de IA para investigação e organização de ideias. Por exemplo, muitos jornalistas freelance, que não têm colegas num contexto de redação, usam o Chatgpt como o seu colega para discutir ideias e dúvidas e ajudá-los a desenvolver o seu trabalho.

Tudo isto permite ao jornalista ter mais tempo para a parte criativa, para além de que a IA pode servir – e já serve sem nos apercebermos – para ajudar os meios a alcançar os seus públicos. Este é o conceito. Mas também pode servir para que se faça um pior e até mais trabalho. É uma questão de gestão estratégica de recursos e dos objetivos que os meios possam ter. Não podemos também esquecer os riscos que têm que ver com a desinformação e a utilização da IA por terceiros para disseminar conteúdos falsos, contra os quais o jornalismo tem de combater. Isto leva-nos, certamente, para mais uma revolução digital. Estamos ainda longe de perceber o seu real impacto, mas sabemos já que vai mudar a forma como pensamos, construímos e somos criativos.

 

É precisamente neste contexto de transformação digital, tão incerto ainda, que se tem alertado para a necessidade de legislação adequada. Vimos recentemente o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, a defender a revisão da Lei da Imprensa, que considera “desatualizada”. Concorda com esta afirmação?

Sim, claro. Leis relacionadas com comunicação e jornalismo, que têm a sua forma atual mantida desde há 30 anos, estão necessariamente desatualizadas em muitos aspetos. O mundo da comunicação era outro. Portanto, sim, é necessário mudar, mas é preciso primeiro discutir e refletir muito sobre uma série de questões. Provavelmente manter-se-ão os fundamentos éticos, deontológicos e profissionais, mas tudo o resto tem de ser alterado, seja no que diz respeito às condições de acesso e exercício da profissão, mas também o que são meios e o que não são, o que os enquadra e por aí fora. Haverá muito trabalho a fazer, numa legislação que já estava desatualizada antes de termos esta potencial nova revolução.

 

No entanto, o poder económico que controla os meios, como já disse, não tem sido exemplar no respeito desses códigos profissionais, dando origem a situações de interferência e má gestão como o recente caso do Global Media Group. Perante estas situações, como podemos defender a liberdade – mas também a segurança – de quem produz informação?

Isto de ter de lidar com os poderes, sejam públicos ou privados, sempre fez parte do jornalismo. Acho que, a esse respeito, não há uma grande diferença [em relação ao passado]. A grande alteração é do ponto de vista do negócio. Para mim – e já escrevi muito sobre isso – o jornalismo tem dois valores: um social e um económico. Se, por um lado, o valor social continua a ser o mesmo, ou seja, as pessoas em Portugal e Espanha reconhecem que deve haver um jornalismo livre e independente para o bom funcionamento da democracia, por outro a maior parte das pessoas não está disposta a pagar por esse jornalismo. Isso faz com que muitos projetos jornalísticos deixem de ser viáveis do ponto de vista comercial, por muito que o seu valor social seja reconhecido.

Por isso, tem-se falado muito nos últimos dias sobre se devemos encarar o jornalismo como igual das indústrias criativas – o que internacionalmente já acontece – e que, por tradição, são financiadas, em parte ou no todo, por instituições públicas, uma vez que não há viabilidade económica. Esta é uma discussão que está em aberto, a par com o debate sobre outras formas de financiamento ou de benefício financeiro, e que precisamos de colocar em marcha para conseguir financiar um jornalismo livre e melhorar a situação dos trabalhadores.

 

Algo que certamente estará a ser feito neste 5.º Congresso dos Jornalistas, que começa hoje [à data da entrevista, 18 de janeiro] em Lisboa, e que parece ser uma excelente oportunidade de discutir e procurar soluções para os atuais problemas. O que acha que pode sair deste encontro?

Já estive no pré-congresso e estarei presente também nos próximos dias, inclusive para falar sobre temas tão importantes como o ensino do jornalismo. Acho, ainda assim, que a bola não está tanto do lado dos jornalistas, mas sim dos poderes: económico, político, social. Tudo aquilo que os jornalistas possam pedir ou decidir não será vinculativo. Acho que, infelizmente, não está nas mãos dos jornalistas resolver esta crise que, não sendo do jornalismo, é do negócio do jornalismo.

 

Como podem então os Estados português e espanhol, no campo político, cooperar em matéria de jornalismo e informação, sem que a sua interferência condicione a devida liberdade de expressão?

A cooperação no jornalismo entre Portugal e Espanha é uma questão muito complexa. Na verdade, somos dois países que, partilhando uma fronteira, vivemos de costas voltadas. Os portugueses olham para o Atlântico e os espanhóis olham para a Europa, não havendo um grande interesse de parte a parte sobre o que se passa no outro país, talvez ainda menor do lado espanhol. Há, sim, interesses mais locais, por exemplo, nas zonas fronteiriças, onde existe desde sempre uma proximidade muito grande entre as pessoas. Em ambos os lados, são normalmente populações muito esquecidas pelos poderes centrais e pelos meios nacionais, que se sentem muito ignoradas, o que as leva a olharam-se mais entre si.

Por isso, acho que a cooperação nesta matéria deve começar nas regiões transfronteiriças. Aí já há um espaço de interesse mútuo. Se não começar por aqui, não estou a ver os meios nacionais portugueses – e o mesmo se aplicará aos espanhóis – a dar um grande destaque às questões importantes do outro país de uma forma consistente e constante a curto trecho.

No que diz respeito à liberdade de expressão, temos também a vantagem de sermos dos países com maiores índices de independência do jornalismo em relação aos poderes, tanto de meios públicos como privados. Por isso não vejo, para já, esse perigo de intromissão pelos Estados. O que existe é a tentação da parte de alguns grupos partidários e económicos de pressionar o jornalismo, mas até agora o setor tem resistido bem a isso tanto em Portugal como em Espanha. Felizmente, esse não é, até ver, um problema premente para os nossos dois países.

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