Para início de conversa, seja-me permitido parodiar, aqui, a conhecida resposta dada por Santo Agostinho, ao ser interrogado se sabia definir o tempo.
Tal qual o autor das confissões, também eu, a propósito da indagação contida no título deste breve ensaio, afirmarei, a princípio, saber o que é um intelectual. Mas, logo após, assaltado pela dúvida e receoso de incorrer em erro, me apressarei a dizer que já não sei bem o que seja um intelectual…
Assim, nesse estado de espírito, vou limitar-me a incitar o paciente leitor, para que, juntos, busquemos, com os meios ao alcance e as luzes do bom senso, uma conceituação razoável e compreensiva desse tipo humano, nem sempre fácil de ser identificado entre as demais ovelhas de nosso rebanho.
CONVITE AO TRABALHO
Procuremos ser, na medida do possível, cartesianos, começando por uma definição genérica, a partir da etimologia da palavra. È óbvio que “intelectual” (substantivo e adjetivo) deriva de “intelecto”, sinônimo de “inteligencia”. Daí o registro dos dicionários: “intelectual é a pessoa dotada de poderes superiores de inteligência”; ou “pessoa dada a estudos literários ou científicos” ou “pessoa que tem gosto predominante pelas coisas do espírito”, ou “pessoa que se ocupa, por gosto ou profissão, com coisas do espírito”. São definições um tanto imprecisas, é certo, transcritas pelo sociólogo Gilberto Freyre no livro “Além do apenas moderno” (Ed. Topbooks-Rio/1973), que focaliza o intelectual, prioritariamente, como um tipo social.
Nessa obra, cuja leitura sugiro ao leitor, o autor de “Casa Grande e Senzala” desenvolve, magistralmente, oportunas reflexões em torno da situação histórica do intelectual, como tipo, a posição social atual deste e suas possíveis projeções sobre o futuro, particularizando o caso do homem brasileiro, na transição do moderno para o pós-moderno, em que já estamos vivendo.
Tem-se, portanto, que o chamado tipo intelectual se caracteriza, antes de tudo, pelo uso que faz da inteligência, ou intelecto, dispondo de instrumentos próprios de trabalho, para desempenhar uma operação sintético-construtiva, especificamente humana, que é o pensamento. O “pensamento”, no dizer de São Tomás de Aquino, resulta da conjunção dos cinco sentidos (visão, audição, tato, olfato e paladar) com o seu intelecto ativo, dotado de seus princípios originários extra-empíricos.
Os instrumentos de trabalho do intelecto, conforme sabemos, têm nome: a atenção, poder de concentração mental, memória, interesse de aprender, hábito de raciocinar e estudiosidade.
O PENSAMENTO E A PALAVRA
Nicola Pende, em “A ciência moderna da pessoa humana”, observa que o pensamento em sua essência característica, se exprime através da palavra ou do nome. O homem fala, mas o animal não fala; porque carece de reflexo imediato do pensamento; a expressão e a comunicação da abstração no conteúdo. Conforme diz Piaget, é a necessidade de socializar o pensamento, a fim de torná-lo mais claro. Pensamos com palavras, e as palavras, por seu turno, são pensamentos pronunciados interiormente, internamente, mentalmente. Note-se, de passagem: existem tantas formas de pensar quantos sejam os indivíduos, sobretudo os tipos humanos psicológicos.
Assim, podemos concluir que, paralelamente ao uso dos seus instrumentos de trabalho, acima referidos, não pode o intelecto abster-se de cultivar, ao longo da vida, a arte do pensamento e a arte da palavra (oral ou escrita). È a sua missão.
Sem a capacidade da atenção, sem a concentração mental, sem o acertado aproveitamento da memória, sem a curiosidade que caracteriza o interesse de aprender, sem o hábito de raciocinar ou emprego correto da razão, sem o manejo hábil e adequado da palavra, sem a prática habitual da leitura de livros, revistas e jornais relacionados com a cultura, está-se vendo que será descabido falar de vida intelectual.
Parece-me que estamos progredindo e poderíamos esboçar, a esta altura, um perfil do intelectual, menos vago e mais específico, “intelectual é a pessoa (homem ou mulher) que sobressai em seu meio sócio-cultural, mediante o uso que faz da inteligência, tanto na operação do pensamento como pela difusão de conhecimentos ligados às ciências, às letras e às artes, na conversação, e também na produção de obra escrita, oral ou fonográfica, com vistas ao progresso espiritual e moral da Humanidade”. Que tal?
AS CATEGORIAS
O “Dicionário Analógico da Língua Portuguesa” (ou de “Idéias Afins”) que é uma adaptação feita por Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, do “Roget’s Thesaurus” inglês, enfileira, entre os termos ou expressões aparentados, analogicamente, com o substantivo intelectual, os seguintes: “ilustrado”, “estudioso”, “pensador”, “sábio”, “notabilidade”, “homem de marca”, “potência intelectual”, “mentalidade de escol”, “homem de vasto saber”, “homem de sólida cultura”, “humanista”, “pantólogo”, “polímata” e “rato de biblioteca”.
Na coluna oposta, reservada aos respectivos antônimos, figuram os “não-intelectuais”, representados pelos termos e expressões que transcrevemos: “ignorante”, “apedeuta”, “iletrado”, “misólogo”, “misóssofo”, “cavalgadura”, “camelório”, “azêmola” e “toupeira”. Esses são os extremos. É evidente que, entre uma extremidade e outra, subsistimos nós, as inteligências medianas, nem por isso menos dignas de respeito e consideração, certo?
Quanto aos intelectuais propriamente caracterizados, alguns autores se aventuram a criar categorias, utilizando critérios pessoais, poderosos ou não.
O jusfilósofo Norberto Bobbio, por exemplo, na obra “Os intelectuais e o poder” (Dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea), distingue o intelectual revolucionário (contra o poder constituído) e o intelectual puro (defensor dos valores absolutos), ao examinar o problema antiquíssimo da relação entre teoria e práxis. E tece, ainda, considerações sobre o anti-intelectualismo, isto é, a situação dos que não se definem por nenhum dos lados, numa postura de automortificação.
Outro exemplo é o da classificação apresentada pelo mestre Gilberto Freyre, que em seu livro anteriormente citado, aponta de um lado o tipo do intelectualista (adepto de formas culturais ou sistemas de valores em que predominam os elementos racionais sobre os elementos volitivos, quer dizer, os intelectuais exagerados), e, na extremidade oposta, os intelectuários (neologismo criado por José Lins do Rego, para caracterizar o intelectual engajado, comprometido, burocratizado, arregimentado, a serviço, como intelectual, do Estado, do partido, de uma organização ou instituição ou de uma causa, como foi a opção de André Malraux, a serviço do governo De Gaulle…).
Antes de concluir, vou registrar que existe um termo para designar o processo de auto-instituição dos intelectuais: “intelligentsia”. O tema, de indiscutível importância, é versado superiormente por Edgar Morin, no quarto volume de sua obra “O Método”, em que ele trata das ideias, seu habitat, vida, costumes e organização (páginas 74-79). È outra leitura que recomendo.
APELO AO LEITOR
Finalmente, gostaria de convidá-lo, amigo leitor, através destes artigos, a prosseguirmos em nosso diálogo sobre esse tema instigante e rico de implicações culturais. Posso contar com você? Escreva-me ([email protected]).
Savio Soares de Sousa – Procurador de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, presidente da União Brasileira de Trovadores (UBT). Presidente e Fundador da Extinta Associacão Niteroiense de Cultura Latino Americana. Autor de inumeros livros de poesia e prosa: “Signo de Sapo”, “Mundo Numero Dois”, “Rapsodia para Sanfona”, etc.