Pouco a pouco, surgem iniciativas que nos fazem acreditar no aumento do interesse pela língua portuguesa na Espanha. O campo institucional vem dando alguns importantes passos. Paralelamente, é preciso trabalhar também a opinião pública.
Tanto a Cúpula Ibérica quanto a Ibero-Americana, realizadas há pouco tempo respectivamente em Lanzarote e em Santo Domingo, deram claros sinais da intenção de promover ambos os idiomas em território ibérico e ibero-americano, estendendo-se inclusive aos países de fala portuguesa e espanhola na África e na Ásia.
De todo modo, embora exista esse desejo latente das altas esferas dos governos, é necessário que tudo o que foi expresso e assinado nas reuniões de cúpula comece a descer de escalão, chegando às comunidades autônomas espanholas, às secretarias de educação e às direções das escolas. Temos fé em que isso aconteça e que possamos ver a médio prazo a implementação de ações concretas no sistema educativo.
Há, contudo, que se considerar o outro lado da moeda, ou seja, é preciso que aumente o interesse pela língua portuguesa entre a opinião pública espanhola, especialmente entre as comunidades em torno ao ambiente escolar: professores, diretores, pais e alunos. Obviamente, não imaginamos o português como substituto ao inglês. A língua de Camões figuraria entre as opções de segundo idioma estrangeiro, situando-se no nível do francês, do alemão e do italiano, por exemplo.
Sabemos por experiência que existe uma resistência ao português. Conhecemos também os motivos que levam a essa rejeição, que são, principalmente, de três ordens: econômica, linguística e cultural. Como diluir esses obstáculos?
Saber português interessa economicamente?
Muitos podem dizer: saber português não acrescenta nenhuma vantagem em termos econômicos, nem na colocação no mercado de trabalho; tirando Portugal, o português é idioma oficial somente em países do chamado Terceiro Mundo, praticamente sem nenhuma expressão no tabuleiro da economia mundial.
À primeira vista, esse obstáculo parece intransponível, já que está apoiado em uma aparente verdade. Mas vejamos a questão com um pouco mais de detalhe. O único representante lusófono do chamado Primeiro Mundo é justamente o vizinho mais próximo da Espanha. Os dois países mantêm laços econômicos e empresariais muito estreitos, além das históricas relações sociais e culturais que os unem. Nesse contexto, saber português abre um vasto campo de possibilidades de trabalho. No meio empresarial português, muitos saberão falar inglês. Parece-nos um tanto sui generis, porém, que um espanhol e um português tenham que se comunicar em inglês. O mercado de trabalho está cheio de meandros, alguns deles muito subjetivos. Falar bem o idioma do outro pode ser um potente diferencial na disputa por melhores cargos e salários.
Quanto ao restante dos países lusófonos, figura o Brasil, que, curiosamente, mesmo sendo classificado como terceiromundista, é um tradicional membro do G-20, flutuando nas últimas décadas entre a 12ª e a 6ª economia mundial. Os interesses comerciais e econômicos entre Brasil e Espanha são enormes, com incontáveis empresas de todos os portes, dos dois países, presentes em uma e outra margem do Atlântico, conformando um considerável fluxo de trabalho e de divisas. Além disso, há que se considerar que o Brasil é a maior potência econômica latino-americana (México e Argentina vêm em seguida, mas sempre atrás do Brasil). Em um gigantesco mercado como a América Latina, o país com maior potencial fala, justamente, português.
Voltemos o olhar para a África. Depois de séculos de abuso e exploração, o continente dá sinais de retomada social e econômica. Na África subsaariana, poderíamos apontar muitos países como prováveis líderes continentais: África do Sul, Nigéria ou Quênia, por exemplo. Outras duas prometedoras potências africanas falam português: Angola e Moçambique. Qualquer um que tenha um pouco de visão de economia e geopolítica sabe intuir que o continente africano guarda inúmeras possibilidades econômicas, comerciais e de trabalho para os próximos anos, em termos de infraestrutura e nas áreas de Educação, Comunicação Social, Tecnologia e Saúde, entre outras. Quem tiver um bom português, portanto, sairá na frente em qualquer negociação que envolva não somente Angola e Moçambique, mas também Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Equatorial e Guiné-Bissau, todos países oficialmente lusófonos.
O português se parece com o espanhol. É necessário estudá-lo?
Depois do aspecto econômico, abordemos o tema linguístico. Já estamos cansados de ouvir dizer que não faz falta investir tempo e dinheiro para estudar português, um idioma praticamente igual ao espanhol. Será verdade?
Muitos caem na ardilosa lenda do “léxico compartilhado”. O que se diz por aí é que mais de 80% das palavras do português são iguais às do espanhol. É fácil derrubar esse argumento daninho:
- Praticamente nenhum verbo é igual nos dois idiomas (e sabemos da crucial importância dos verbos para a comunicação). Vejamos: perguntar/preguntar; ouvir/oir; dizer/decir; trazer/traer; escrever/escribir. Muitos podem ser parecidos, mas não iguais. E isso porque exemplificamos somente com infinitivos. As conjugações trariam diferenças muito maiores e mais complicadas, tanto nos verbos irregulares quanto nos regulares.
- Quanto aos substantivos e adjetivos, muitos realmente têm a grafia praticamente igual (há que se considerar que as regras de acentuação são diferentes, excetuando-se a norma para as proparóxitonas). Isso, no entanto, significa pouco. O fato de ter grafias praticamente iguais beneficia sobretudo a compreensão leitora, que é apenas uma entre as quatro destrezas trabalhadas em um idioma. Quando passamos às aptidões orais, entram em jogo fatores fonéticos, melódicos e prosódicos, e aí toda a similaridade cai por terra. As fonéticas do português e do espanhol são muito, mas muito diferentes. É preciso estudá-las com afinco para reconhecer os sons e, depois, tentar articulá-los.
- Outro ponto são as inúmeras contrações realizadas pelo português, o que afeta todo o sistema de artigos, pronomes e preposições. Um falante de espanhol que nunca estudou português dificilmente intuirá que “duns” é “de unos”; se consideramos ainda que “duns” tem uma forte carga de nasalização, a compreensão é praticamente impossível sem aviso prévio.
- Por fim, mencionamos rapidamente o tema dos falsos cognatos. Em dois idiomas tão próximos como o português e o espanhol, a quantidade desses “amigos da onça” linguísticos é imensa.
Então, a resposta à pergunta inicial – “É necessário estudá-lo?” – não poderia ser outra: é claro que sim. Mesmo em se tratando de idiomas irmãos, o estudo minucioso se faz necessário. Dizer o contrário é sinal de preguiça. Existe um enorme potencial de intercompreensão entre o português e o espanhol, mas essa intercompreensão não vai efetivamente acontecer da noite para o dia, como em um passe de mágica. É preciso – óbvia e claramente, sem sombra de dúvidas – estudar.
Da Vinci, Flaubert, Schopenhauer… É possível fazer frente a isso?
Essa é uma questão um tanto complexa. Tememos falhar em sua análise, dado o curto espaço de quatro ou cinco parágrafos que nos restam para concluir este artigo. Mas vamos lá. Adentramo-nos no campo da subjetividade, nas áreas dos sentimentos de glamour e estatuto sociocultural.
Quando o estudo de um idioma estrangeiro não está diretamente ligado ao fator econômico (a procura de emprego, por exemplo), a escolha costuma recair na “beleza” da língua e em tudo o que ela representa culturalmente. O conceito de “beleza”, claro, já é um tanto subjetivo e está influenciado em grande medida por construções sociais. Desde muito jovens, estudamos temas como o Renascimento italiano ou a Revolução Francesa. E qualquer estudante mais atento, ainda que muito jovem, sabe reconhecer a Alemanha como berço de boa parte dos maiores pensadores dos últimos séculos. São apenas exemplos esparsos. O que nos interessa é concluir que, desde a mais tenra idade, o estudante espanhol (e, imagino, de praticamente qualquer país ocidental) vai formando uma imagem glamourosa de países como França, Itália e Alemanha.
O interesse pelos idiomas surge na esteira desse glamour. Nesse contexto, estudar francês, italiano ou alemão dá um estatuto social muito mais alto do que dedicar-se ao estudo do português, considerado um idioma “menor” quando comparado aos outros, representantes da alta cultura e de destacadas civilizações.
Para fazer frente a isso, é preciso uma mudança de mentalidade. Não é fácil. O trabalho teria que começar pelos bancos escolares, pelos livros de primária e secundária e pela própria formação dos professores. No ambiente escolar, há que se falar sobre a Revolução dos Cravos e a Guerra do Paraguai. Há que se divulgar mais os nomes de Luis Vaz de Camões, Fernando Pessoa, Padre Antônio Vieira, Aleijadinho ou José de Anchieta, entre outros pensadores e artistas cruciais para a história de todo o universo da iberofonia. Novamente, são apenas exemplos esparsos.
Outro argumento a nosso favor: a pluricentralidade da Língua Portuguesa. Excetuando-se o francês, tanto o italiano quanto o alemão são idiomas oficiais apenas em seus países de origem e em algumas áreas de influência fronteiriças. E o francês, mesmo estando presente em muitos países, não tem o mesmo número de falantes nativos que o português e nem tão grande variedade cultural.
Essa representatividade cultural é um trunfo da nossa língua. Por meio do português, abrem-se acessos diretos a uma infinidade de culturas muito diversificadas na América, na Europa, na África e na Ásia. E o mundo está precisando disso. Diversificar os olhares e ampliar as mentes é um imperativo para quem quer sobreviver na sociedade atual, inclusive se pensamos aqui em mercado de trabalho.
Além de Maria Montessori e Jean Piaget, seria bom conhecer a revolucionária pedagogia de Paulo Freire. Além de Roland Barthes e Umberto Eco, seria bom conhecer o multipremiado professor e filósofo Eduardo Lourenço. Além de Brecht, Goethe ou os Irmãos Grimm, seria bom conhecer um pouco de Lídia Jorge, Agostinho Neto, José Craveirinha, João Cabral de Melo Neto e tantas outras pérolas que ao longo dos últimos séculos vêm ressignificando a visão de mundo por meio das particulares histórias dos países lusófonos. Essa cultura não pode ser ignorada e não pode ser deixada para trás. Considerável parcela do mundo fala português. Temos que estar aptos a ouvir o que ela tem a dizer.
Sérgio Massucci Calderaro