José Saramago disse uma vez – em carta a um outro incontornável da literatura portuguesa e filho de pai galego, José Rodrigues Miguéis – que o público devia “meter o nariz na oficina do escritor”, para além dos críticos que já o fazem. Conhecer o processo de criação dos livros e tudo aquilo a que o escritor se socorre neste itinerário. E foi precisamente isso que, 100 anos depois do seu nascimento, tive a oportunidade (e o privilégio) de fazer ao visitar a exposição El taller de Saramago, patente na Sala das Guilhotinas da Biblioteca Nacional de Espanha, em Madrid, até 8 de janeiro do próximo ano.
A premissa desta exposição, que também passou pela Biblioteca Nacional em Lisboa, é já por si bastante interessante e intrigante. Mas, neste caso, acho mesmo necessário destacar a curadoria e o desenho expositivo, a meu ver fulcrais para que se possa fazer uma leitura integral do universo saramaguiano: do escritor, do homem e das obras. De um lado os comissários Carlos Reis e Sara Grünhagen, dissecadores (no bom sentido) do autor de Memorial do Convento e responsáveis pela seleção dos materiais expostos; e do outro Alejandra Rodríguez Puente, que montou a exposição e concretizou os ambientes propostos para esta (re)descoberta.
Ambientes esses que correspondem, de facto, a três eixos principais, apresentados cronologicamente. Um antes, um durante e um depois que, juntos, fazem todo o sentido, não só pela ordem em que aparecem, mas também pelas ligações intertextuais que nos permitem fazer. Não fosse esta exposição uma proposta de leitura da construção da obra de Saramago, partindo de várias referências – bibliográficas e não só – que alimentam e enriquecem a composição da obra em si, para além de outras que se apoiam nela.
O eixo inicial, intitulado El taller y la invención del escritor, dá-nos a base para entendermos como surgem as palavras e as personagens que dão vida aos textos. Aqui é muito interessante perceber a importância da relação das várias facetas de Saramago para o processo criativo: o leitor – está mesmo exposto o seu cartão de leitor da Biblioteca Nacional de Portugal – o investigador, o editor e o tradutor (confesso que não conhecia as duas últimas).
Todas se revelam importantes, mas percebemos que é a investigação, aprofundada na subsecção La investigación y la escritura, o ponto nevrálgico da escrita do autor. Os materiais preparatórios expostos de obras como O ano da morte de Ricardo Reis (1984), desde apontamentos a cartas que escreveu e recebeu de amigos, mostram a preocupação em tornar o texto profundo e rigoroso, sem descartar o lado ficcional e inventivo, mas também as dúvidas que lhe surgiam pelo caminho. Sublinho desta parte uma carta redigida pelo historiador José Mattoso a propósito da preparação do livro A jangada de pedra (1986) – uma fantástica reflexão da condição ibérica que recomendo – em que lhe sugere possíveis traduções em vários idiomas da frase “Nós também somos ibéricos”.
O segundo eixo, sob o título La obra de Saramago, revela-se surpreendente não só por nos apresentar o processo de edição das obras e o seu resultado, ou seja, as obras já publicadas e traduzidas, como também por dar-nos a conhecer alguns textos que nunca chegaram a ver o seu lugar nas bibliotecas e livrarias. É possível ver mesmo apontamentos com vários esquemas – de descrição de personagens, organização da sequência narrativa e também referências históricas – que refletem o processo metódico da escrita de Saramago, bem como os próprios rascunhos das obras. O que é estimulante na medida em que nos faz reconhecer as semelhanças com o resultado das obras – e as alterações que, por um motivo ou outro, surgiram – mas também pelo facto de percebermos a qualidade dos textos que nunca foram publicados e de imaginarmos as repercussões se o tivessem sido.
Na terceira e última parte da exposição, Recepción y consagración, somos convidados a testemunhar o impacto do legado do prémio Nobel português, derivado sobretudo da obra que escreveu e eternizado pela figura de grande dimensão em que se converteu. Por isso, não podia deixar de estar exposto o diploma dessa mesma distinção sueca, a mais cobiçada no mundo literário, entre outros prémios e condecorações que Saramago foi recebendo ao longo da sua vida e postumamente, como o Grande Colar da Ordem de Sant’Iago da Espada (1998) e o Grande Colar da Ordem de Camões (2021). Pode ser também vista uma cronologia biográfica com os vários momentos-chave da vida pessoal e literária do escritor, ou mesmo ainda um quadro com os vários doutoramentos honoris causa que recebeu, entre outros, por universidades espanholas como a de Sevilha (1991), Castela-Mancha (1997) e Alicante (2004) e pelas portuguesas de Évora (1999) e Coimbra (2004).
Chegado ao fim deste percurso, dei-me conta de que fiquei realmente a conhecer mais sobre Saramago, cuja figura me era já relativamente familiar – sobretudo pelo documentário José e Pilar (2010), que também recomendo – e cuja obra me tem vindo a suscitar cada vez mais interesse. No entanto, fiquei com a estranha sensação de que, sendo a exposição destinada ao público espanhol, falta algum contexto que permita a alguém que não conhece, de todo, nem a figura nem a obra do autor, entender a profunda ligação deste com Espanha e, por conseguinte, a pertinência daquela mostra na capital do país.
Ainda assim, compreendo que seja difícil pôr em palavras ou transmitir pelos objetos que ficaram a complexidade deste vínculo, que dificilmente pode ser explicado na globalidade por alguém que não seja o próprio Saramago, mesmo que esse alguém o conheça muito bem. É também essa incompletude que dá sentido à exposição, pois a sua dimensão final – como também é a de uma qualquer obra artística – será sempre a relação com quem observa, que pode (e deve) procurar saber mais. Tal como o aventureiro d’O Conto da Ilha Desconhecida, o espectador deve partir à descoberta de tudo o que desconhece, encontrando, nessa busca, outras verdades sobre si mesmo.
João Rodrigues e Sousa